![]()
Lourenço tinha setenta e cinco anos e, no fim, um só nome. Funcionário público toda a vida, casado, pai de uma filha que partira para o estrangeiro, viu a sua existência desfiar-se aos sessenta e oito anos, quando lhe disseram: demência de Alzheimer. A notícia não chegou com estrondo, mas com uma erosão lenta. Primeiro a perda das chaves, depois a confusão do calendário, por fim o apagamento dos rostos mais íntimos.
Numa noite, já sem bússola para distinguir o lar de um cenário estranho, não reconheceu a mulher. A doença trocou-lhe o sentido, e o gesto que se seguiu foi violência sem intenção, consequência de um cérebro em ruína. A polícia chegou, o processo avançou. No interrogatório, Lourenço disse o seu primeiro nome e a morada da infância: “vivo com os meus pais”. Ora chamava pela mulher, ora esquecia que já não estava.
É recebido no Hospital Prisional com um mandado judicial de internamento preventivo. Era um homem idoso, frágil e desorientado, incapaz de compreender o que lhe era imputado. A ciência descreve-o com rigor: défice de memória, desorientação espaço-temporal, ausência de insight, incapacidade de juízo crítico. O direito, por sua vez, dá-lhe nome jurídico: anomalia psíquica. O artigo 20.º do Código Penal é claro e quando a doença anula a capacidade de compreender ou de se autodeterminar, o réu é inimputável. Não se absolve o facto, mas reconhece-se que não havia consciência nem liberdade para escolher.
Após a sentença, foi internado numa Unidade de Psiquiatria Forense. Nunca percebeu a acusação, nunca compreendeu a sentença, nunca retomou o contacto com a filha. A mulher a quem chamava em vão, já não existia na sua memória. Meses depois, morreu entre registos clínicos, medicação sintomática e cuidados que, mais do que tratar, procuravam preservar um resto de dignidade.
Esta história é ficção. Lourenço não existiu como pessoa singular. Mas existem muitos Lourenços: homens e mulheres com demência que, arrastados pela engrenagem judicial, atravessam interrogatórios e sentenças sem nunca compreenderem o que se passa. A justiça pede responsabilidade, mas a doença retira a capacidade de a ter. É aqui que a psiquiatria forense cumpre o seu papel: lembrar que o direito não pode exigir ao cérebro aquilo que a biologia já lhe negou.
Porque mais do que decidir sobre culpabilidade, o desafio está em garantir que a dignidade não se perde quando a memória já não sabe o caminho de volta.
🔍 Investigar além do texto
- Aptidão para ser julgado: conceito jurídico-clínico essencial, mas ainda ausente na prática portuguesa. Refere-se à capacidade do arguido compreender o processo penal e participar na sua própria defesa, avaliando se, no momento do julgamento, possui discernimento suficiente para acompanhar os atos processuais.
- 📜 Constituição da República Portuguesa, artigo 32.º: garante o direito de defesa e o princípio do processo equitativo; julgar quem não compreende o julgamento viola esse direito fundamental.
- ⚖️ Código de Processo Penal: não prevê avaliação formal de aptidão para ser julgado, lacuna que contrasta com outros ordenamentos (como o britânico, canadiano ou australiano), onde a fitness to stand trial é obrigatoriamente avaliada em caso de dúvida.
- 🧠 Lei n.º 35/2023 (Lei da Saúde Mental): reconhece a incapacidade clínica e a necessidade de internamento involuntário quando a pessoa não tem consciência da sua doença, mas não assegura a articulação com o processo penal.
- 🏛️ Decreto-Lei n.º 70/2019: regula a execução das medidas de segurança aplicadas a inimputáveis, mas apenas após a sentença, deixando por preencher o momento prévio em que se decide se alguém está, ou não, em condições de ser julgado.21


0 Comments