Dormir e Sonhar: a vantagem cerebral feminina face ao Parkinson

26 de Outubro 2025

Um estudo internacional com 687 participantes descobriu que mulheres com um distúrbio do sono precursor da doença de Parkinson exibem menos atrofia cerebral do que homens. A diferença, drástica, aponta para um efeito protetor ligado a hormonas, abrindo novas vias para terapias.

Um estudo internacional de grande escala detetou uma disparidade cerebral notável entre homens e mulheres que sofrem de um distúrbio do sono considerado um prenúncio da doença de Parkinson. A investigação, que envolveu quase 700 participantes, concluiu que as mulheres exibem uma perda de tecido cerebral significativamente inferior à dos homens, apesar de apresentarem uma gravidade clínica semelhante. Esta descoberta, publicada na Nature Communications, aponta para possíveis mecanismos de proteção ligados a hormonas e abre novos caminhos para explorar terapias.

O distúrbio de comportamento do sono REM (RBD, na sigla inglesa) faz com que os indivíduos actuem fisicamente os seus sonhos, por vezes de forma violenta. Mais do que uma mera curiosidade clínica, esta condição é o marcador precoce mais fiável de doenças neurodegenerativas como o Parkinson. Estima-se que mais de 70% das pessoas com RBD isolado acabará por desenvolver uma destas patologias. “Este distúrbio do sono oferece uma janela de oportunidade única para estudar os mecanismos de neurodegeneração antes do aparecimento dos grandes sintomas motores ou cognitivos”, explica Shady Rahayel, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Montreal e investigador principal do estudo.

A equipa analisou 888 ressonâncias magnéticas de nove centros internacionais, tendo incluído no final 687 participantes – 343 doentes com RBD isolado e 344 indivíduos saudáveis. Os resultados revelam um contraste acentuado. Enquanto nos homens com RBD se observou uma atrofia significativa em 37% das áreas do córtex cerebral, nas mulheres essa degradação ficou-se por apenas 1% das regiões. Esta diferença manifesta-se apesar de a idade média, à roda dos 67 anos, e as características clínicas serem comparáveis. “Os homens mostram um afinamento cortical muito mais extenso e severo do que as mulheres, particularmente em zonas que controlam o movimento, a sensação, a visão e a orientação espacial”, nota Marie Filiatrault, primeira autora do estudo e estudante de doutoramento na Université de Montréal.

Na tentativa de compreender este fenómeno protector, os cientistas recorreram a uma metodologia inovadora, cruzando os dados de imagem cerebral com a expressão genética em cérebros saudáveis post-mortem. A análise revelou que as regiões cerebrais menos afectadas nas mulheres apresentam uma expressão aumentada de genes associados à função dos estrogénios no cérebro, nomeadamente os genes ESRRG e ESRRA. Estes genes produzem recetores de hormonas relacionados com o estrogénio, desempenhando um papel crucial na função mitocondrial, na produção de energia celular e na sobrevivência dos neurónios produtores de dopamina – as células que degeneram no Parkinson. O gene ESRRG destacou-se por ser particularmente ativo no tecido cerebral.

“Os nossos resultados sugerem que certas áreas do cérebro nas mulheres com distúrbio de comportamento do sono REM isolado estão mais protegidas do que nos homens, provavelmente através da ação dos estrogénios”, sublinha Shady Rahayel, que é também investigador no Centro de Estudos Avançados de Medicina do Sono do Hospital Sacré-Cœur-de-Montréal. Esta linha de investigação ganha especial relevância porque, embora apenas uma minoria dos doentes com Parkinson manifeste RBD, estudar esta fase prodrómica permite observar os mecanismos de proteção cerebral numa fase muito precoce da doença, antes de o dano se tornar extensivo.

As implicações do trabalho estendem-se ao desenho de futuros ensaios clínicos, realçando a necessidade de considerar o sexo como uma variável biológica fundamental. Os autores recomendam a separação de homens e mulheres na randomização para grupos de tratamento, o que poderá aumentar a robustez estatística dos estudos. Paralelamente, os mecanismos biológicos agora identificados, em especial os relacionados com o gene ESRRG, emergem como alvos terapêuticos promissores. Investigações pré-clínicas já haviam demonstrado que uma maior atividade deste gene pode proteger os neurónios de dopamina contra a toxicidade da alfa-sinucleína, a proteína que se acumula de forma anormal no cérebro dos doentes com Parkinson. Este avanço aproxima a comunidade científica de um futuro onde os tratamentos poderão ser adaptados não só à doença, mas também às características biológicas individuais.

Referências Bibliográficas:
Filiatrault, M., et al. Women better protected against early neurodegeneration in Parkinson’s disease. Nat Commun 16, 2025.
https://nouvelles.umontreal.ca/en/article/2025/10/21/women-better-protected-against-early-neurodegeneration-in-parkinson-s-disease

NR/HN/ALphaGalileo

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