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O atendimento pré-hospitalar constitui uma das áreas mais críticas e complexas da resposta em saúde e proteção civil. No contexto da emergência, onde o tempo é um recurso vital, coexistem exigências técnicas, legais e éticas de elevada complexidade. Entre elas, a confidencialidade, assume-se como eixo estruturante da relação entre o profissional e o cidadão, representando não apenas uma obrigação ética, mas também um imperativo jurídico e moral.
Os bombeiros e os técnicos de emergência, pela natureza da sua missão, são frequentemente os primeiros profissionais a entrar na vida e no espaço privado das pessoas em situações de vulnerabilidade extrema. São, por isso, também aqueles que mais profundamente contactam com a intimidade e a privacidade dos cidadãos. Nenhum outro grupo profissional intervém com tanta frequência dentro das habitações, em ambientes familiares, domésticos e pessoais, onde se revelam dimensões da vida que, em circunstâncias normais, permaneceriam resguardadas.
Ao entrar numa casa, os bombeiros e os técnicos de emergência não atravessam apenas uma porta física, entram num espaço simbólico de confiança, onde encontram realidades que vão além do evento clínico ou da emergência técnica. A sua presença testemunha fragilidades, histórias, conflitos, medos, doenças e relações. Essa proximidade, que é simultaneamente privilégio e responsabilidade, exige uma conduta ética exemplar, baseada no respeito absoluto pela dignidade humana e pela confidencialidade de tudo o que observa, ouve ou percebe.
O dever de reserva, neste contexto, adquire uma dimensão humana e moral particularmente exigente. Os bombeiros e os técnicos de emergência, não são apenas um agente de socorro, são também protetores silenciosos da vida privada, comprometidos em proteger não apenas o corpo, mas também a identidade e a história da pessoa que socorrem. Manter o sigilo sobre o que vê e ouve é uma forma de cuidado, porque é o prolongamento ético do ato de salvar.
Assim, a atuação dos bombeiros e dos técnicos de emergência deve ser orientada por um princípio essencial: entrar com respeito e sair com discrição. O respeito é o reconhecimento da dignidade do outro, e a discrição é o compromisso ético de não levar consigo, para fora daquele espaço, nada que pertença à intimidade da pessoa. Esta consciência é o que transforma a intervenção técnica num verdadeiro gesto de humanidade.
A confidencialidade, entendida como o dever de preservar e não divulgar informação pessoal, clínica ou social de que o profissional tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções, decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. Em termos bioéticos, assenta nos princípios da autonomia, da beneficência, da não maleficência e da justiça. O princípio da autonomia reconhece à pessoa o direito a decidir livremente sobre a sua vida e sobre a utilização da informação que lhe diz respeito. A beneficência impõe ao profissional o dever de agir no melhor interesse da pessoa, não apenas através da intervenção clínica, mas também pela proteção da sua integridade moral. A não maleficência exige a prevenção de qualquer forma de dano, incluindo o dano social resultante da exposição indevida de dados pessoais ou clínicos. Por sua vez, a justiça impõe a igualdade no respeito pela confidencialidade, sem discriminação de qualquer natureza.
A confidencialidade é uma dimensão essencial da beneficência e traduz, de forma concreta, o princípio da justiça, assegurando a cada pessoa o direito equitativo à proteção da sua privacidade e da sua dignidade. No contexto pré-hospitalar, onde os operacionais contactam com o sofrimento humano em cenários de vulnerabilidade extrema, o dever de segredo é expressão da responsabilidade moral de tratar cada pessoa como fim e nunca como meio. A confidencialidade é, nesta perspetiva, uma extensão do cuidar.
Do ponto de vista jurídico, o dever de confidencialidade encontra-se densamente regulado no ordenamento português. Na Constituição da República Portuguesa, o artigo 26.º, estabelece o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção dos dados pessoais, impondo restrições à sua utilização e divulgação.
A Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro), refere que a informação de saúde é propriedade da pessoa e reconhece expressamente o direito dos utentes à confidencialidade dos dados pessoais e clínicos, vinculando todos os intervenientes no processo de prestação de cuidados, incluindo os agentes de emergência, à obrigação de garantir essa proteção.
A Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, que assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – RGPD), classifica os dados relativos à saúde como categoria especial de dados sensíveis, sujeitos a tratamento restrito e legitimado apenas em circunstâncias específicas, como a salvaguarda de interesses vitais do titular ou o exercício de funções de interesse público no domínio da saúde. O RGPD obriga ainda à minimização da informação, registar apenas o indispensável, nunca mais do que aquilo que o caso clínico exige. O tratamento de dados em contexto de emergência enquadra-se na exceção de proteção da vida, mas não dispensa o dever de minimização da informação e de sigilo funcional.
A Lei de Bases da Proteção Civil (Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, atualizada na Lei n.º 80/2015, de 03 de agosto), determina, que todas as ações de emergência devem respeitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, incluindo a sua integridade moral e privacidade. Consequentemente, os bombeiros e restantes técnicos de emergência, enquanto agentes do sistema de proteção civil, estão vinculados a estes deveres ético-legais, devendo atuar de forma proporcional, necessária e limitada ao objetivo de salvaguarda da vida humana.
No Código Penal, o artigo 195.º, tipifica o crime de violação de segredo, punindo quem revelar segredo alheio obtido em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte, sendo a sanção agravada pelo artigo 196.º quando cometida por quem tenha dever específico de sigilo, como profissionais de saúde ou operacionais na linha de prestação de cuidados, designado por aproveitamento indevido de segredo.
A violação da confidencialidade pode originar responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme a gravidade e a consequência do ato. A quebra de sigilo só se legitima em duas circunstâncias: mediante consentimento livre e informado do titular dos dados, ou quando exista perigo grave e iminente para a vida ou segurança do próprio ou de terceiros, situação em que o princípio da proteção da vida prevalece sobre o dever de sigilo.
Transformar a ética e a lei em comportamento, exige disciplina e consciência profissional, principalmente, porque o atendimento pré-hospitalar apresenta desafios que frequentemente colocam os profissionais perante dilemas éticos. O atendimento em espaços públicos expõe a vítima a olhares e comentários de terceiros, exigindo do profissional, prudência na comunicação verbal e não verbal. A presença de familiares, curiosos ou jornalistas aumenta o risco de exposição indevida de dados clínicos, impondo contenção na partilha de informação. A coordenação entre diferentes entidades (INEM, PSP, GNR, proteção civil, hospitais) requer a transmissão de informação apenas na medida estritamente necessária à continuidade dos cuidados, sob pena de se incorrer em excesso informativo.
Num contexto contemporâneo marcado pela digitalização e pela exposição mediática, o uso indevido de redes sociais e dispositivos de imagem tornou-se uma ameaça real à confidencialidade. A captação e divulgação de imagens de vítimas, mesmo sem identificação explícita, constitui violação grave do RGPD e do Código Penal. O dever de sigilo estende-se ao comportamento digital do profissional, o que se observa em serviço pertence ao domínio protegido da vida privada e não ao espaço público.
Contudo, o dever de confidencialidade e o segredo profissional não são absolutos. A própria lei prevê a sua limitação quando esteja em causa a proteção de direitos fundamentais de terceiros, nomeadamente o direito à vida, à integridade física e à segurança de menores ou vítimas vulneráveis. Em casos de suspeita ou evidência de crime público, os bombeiros e operacionais de emergência tem o dever de o comunicar às autoridades policiais ou judiciais competentes. Essa comunicação deve ser feita de forma objetiva, factual e restrita, limitando-se à informação necessária para o apuramento da verdade e proteção da vítima.
A ponderação entre o dever de sigilo e o dever de denúncia deve obedecer ao princípio da proporcionalidade dos direitos, atuando o profissional de forma a restringir o segredo apenas na medida estritamente necessária à proteção de bens jurídicos superiores, como a vida, a integridade física e a segurança das vítimas.
Compreender os princípios éticos, os limites legais e os desafios do terreno, resta integrar tudo numa prática diária que una técnica, responsabilidade e humanidade. Neste sentido, as boas práticas são o fio condutor da uma atuação correta: o uso de linguagem técnica adequada e respeitosa; o registo clínico fidedigno e limitado aos dados essenciais; a proteção da privacidade física do doente através do posicionamento adequado dos meios operacionais; a comunicação restrita e dirigida apenas aos intervenientes legitimados; a abstenção absoluta de divulgar informações em ambientes informais ou digitais; e a formação contínua em ética, legislação e proteção de dados. Estas práticas não se esgotam na dimensão normativa, constituem uma expressão de profissionalismo e um instrumento de proteção. Protege a vítima, que se sente respeitada e confiante; protege os operacionais, que atuam dentro da lei; e protege as instituições, que mantém a confiança da comunidade.
No atendimento pré-hospitalar, a ética e a confidencialidade são tão essenciais como a rapidez e a técnica, e cada intervenção é um encontro entre vulnerabilidade e responsabilidade. A qualidade de um ato de socorro não se mede apenas pela eficácia clínica, mas também pela integridade moral com que é executado. Cada vez que um bombeiro ou técnico de emergência protege a intimidade de uma pessoa, está a defender o valor da vida humana em todas as suas dimensões. A confidencialidade é uma forma de cuidado, e a discrição é uma forma de respeito. Proteger a confidencialidade é proteger a confiança que a sociedade deposita nos bombeiros e técnicos de emergência. Cada emergência é um teste à capacidade de unir técnica e ética, e no pré-hospitalar, salvar uma vida é um ato de coragem, preservar a sua dignidade é um ato de ética.
Respeitar a confidencialidade é mais do que cumprir a lei, é honrar o juramento silencioso que cada operacional faz, enquanto guardião da vida e da dignidade humana.


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