APDH 2030: Do Diagnóstico Crítico ao Realismo Esperançoso no SNS

30 de Outubro 2025

Na Conferência 'Saúde Odisseia 2030' da APDH, moderada por Vitor Ramos, Céu Mateus e Adalberto Campos Fernandes debateram o futuro do SNS. Ela criticou a cópia de modelos externos; ele enalteceu conquistas e alertou para o improviso

No auditório da Polícia Judiciária, a Conferência “Saúde Odisseia 2030”, integrada na iniciativa APDH 2025, juntou especialistas para um retrato sem filtro dos desafios que o Sistema de Saúde, e particularmente o Serviço Nacional de Saúde (SNS), enfrentará na próxima década. Sob moderação de Vítor Ramos, do Conselho Nacional de Saúde, o painel contou com as intervenções da professora Céu Mateus, economista da saúde da Universidade de Lancaster, e de Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde e professor na ENSP NOVA.

A sessão iniciou-se com um leque de perguntas-chave lançadas pela organização, desde a sustentabilidade financeira até ao equilíbrio entre inovação e equidade no acesso. Foi este o ponto de partida para um debate que oscilou entre o diagnóstico crítico e uma certa reserva de otimismo.

Céu Mateus: “Deixar as boas práticas internacionais nesses países”

A professora Céu Mateus não poupou o sistema à sua análise, começando por desaconselhar a importação acrítica de modelos estrangeiros. “Talvez a minha sugestão em relação às boas práticas internacionais seja deixar as boas práticas desses países nesses países”, afirmou, usando o exemplo do Reino Unido, onde lecciona há 11 anos. Descreveu um sistema nacional de saúde inglês com problemas “mais acentuados” do que os portugueses, apontando a quase inexistência de um sector privado acessível como um diferencial crucial. “Em Inglaterra não há setor privado nenhum para as pessoas recorrerem. E, portanto, como não há resposta do público, não se trata. Pronto, é assim.”

A resignação dos utentes britânicos foi outro factor destacado, em contraste com a exigência dos portugueses. No entanto, reconheceu que em Inglaterra as reformas são geralmente acompanhadas por sistemas de monitorização, algo que, na sua perspectiva, falha em Portugal. “As reformas vão acontecendo sem que nós consigamos desenhar medidas de monitorização”, criticou, acrescentando que muitas alterações são feitas “claramente só atendendo a preferências de índole política” e “sem qualquer evidência de que vão resultar”.

A questão do financiamento foi abordada com cepticismo face à ideia de que mais dinheiro resolve todos os problemas, citando os Estados Unidos como exemplo de alto custo com resultados medíocres para largas faixas da população. Defendeu, por isso, uma gestão mais inteligente e menos desperdício. A formação e retenção de profissionais foram apontadas como um desafio global, exigindo uma reorganização dos serviços que atenda às expectativas das gerações mais novas, como a flexibilidade horária. “Não vale a pena dizer que o nosso tempo é que era bom, porque o nosso tempo está a acabar.”

Adalberto Campos Fernandes: Um contraponto de “realismo esperançoso”

Adalberto Campos Fernandes trouxe um tom distinto, alertando para o perigo de cair numa “narrativa destrutiva de que nós estamos em Portugal à beira do abismo. Isso é verdadeiramente falso.” Relembrou conquistas históricas, como a redução da mortalidade infantil e os ganhos na esperança média de vida, posicionando o desempenho do sistema de saúde português no primeiro quartil a nível europeu.

“Temos dos melhores médicos, dos melhores enfermeiros e dos melhores profissionais de saúde”, afirmou, atribuindo parte dos problemas à tendência nacional para o improviso, que ironizou como sendo “reformas do tipo Ambrósio – apeteceu-me algo, tomei a liberdade de pensar em si e faço qualquer coisa”. Para o futuro, defendeu a necessidade de “menos rigidez na apreciação dos problemas” e uma avaliação académica independente.

Campos Fernandes contestou veementemente a narrativa da falta generalizada de médicos. “Há falta de alguns médicos em algumas especialidades, há falta de mobilidade profissional e há falta de um redesenho de rede”, precisou, apontando para a existência de redes de referenciação obsoletas. A sua intervenção culminou com uma crítica mordaz aos custos diretos suportados pelas famílias, considerando “obsceno” que uma família média possa gastar anualmente 12 mil euros em saúde. Propôs a ponderação de um financiamento único e o fim da “rarefação dos recursos” associada ao trabalho precário.

O fio condutor: a complexa odisseia rumo a 2030

O debate, longe de esgotar respostas, expôs a complexidade da odisseia que é preparar o SNS para o futuro. Se, por um lado, Céu Mateus enfatizou a necessidade de políticas baseadas em evidência e adaptadas à realidade portuguesa, Campos Fernandes insistiu na valorização do que já foi alcançado, apelando a uma mudança de mentalidades e a uma melhor governação. A moderação de Vítor Ramos orientou o diálogo por estes dois eixos, deixando no ar a pergunta sobre qual o rumo a seguir num mar de desafios como o envelhecimento, a inovação tecnológica, as expectativas dos cidadãos e a sempre delicada equação financeira.

RE/HN

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

Médicos do Amadora-Sintra descrevem colapso nas urgências

Trinta médicos do serviço de urgência geral do Hospital Amadora-Sintra enviaram uma carta ao bastonário da Ordem a relatar uma situação que classificam de insustentável. Denunciam o incumprimento crónico dos rácios de segurança nas escalas, com equipas reduzidas e pouco diferenciadas, um cenário que resulta em tempos de espera superiores a 24 horas e que compromete a dignidade da prática clínica e a segurança dos utentes

Encerramentos em série nas urgências de ginecologia e obstetrícia preocupam utentes

Dois serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia e um pediátrico estarão encerrados no sábado. No domingo, a situação agrava-se com o fechamento de quatro urgências obstétricas. As escalas do Portal do SNS, consultadas pela Lusa, confirmam os constrangimentos, atribuídos à falta de profissionais, e indicam que outras unidades funcionarão com condicionamentos.

Especialistas nacionais e internacionais reúnem-se em Coimbra para conferência sobre estimulação cerebral

A Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra acolhe a 2ª Conferência Portuguesa sobre Estimulação Cerebral em Psiquiatria e Saúde Mental a 18 de dezembro de 2025. O evento, que sucede a uma primeira edição na Fundação Champalimaud, junta especialistas nacionais e internacionais para consolidar uma plataforma de diálogo entre a investigação e a prática clínica, com organização a cargo do CIBIT e da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, contando ainda com apoio institucional da ULS Coimbra

INSA assume coordenação nacional da rede de vigilância a vetores

Portugal dispõe agora de uma estrutura formalizada para monitorizar e responder a ameaças de doenças transmitidas por mosquitos e carraças. No dia do seu 126.º aniversário, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge viu reforçadas as suas atribuições, passando a coordenar oficialmente a Revive. O presidente Fernando Almeida garante que o país está preparado para agir perante eventuais emergências, citando a experiência de outros países do sul da Europa onde já se registam casos autóctones

Europa une esforços para travar desigualdades no acesso a tratamentos oncológicos

A Rede Europeia de Centros Compreensivos de Cancro (EUnetCCC) apresentou esta sexta-feira, em Paris, um documento estratégico que apela a medidas urgentes para colmatar as disparidades no acesso a cuidados oncológicos entre os Estados-membros. O White Paper defende a consolidação da rede como infraestrutura permanente e alerta que, sem ação política, as desigualdades continuarão a crescer, comprometendo o combate à doença que mata 1,3 milhões de pessoas por ano na Europa

ULS Médio Tejo Investe em Mobilidade para Equipas Comunitárias

A Unidade Local de Saúde do Médio Tejo colocou na estrada uma nova viatura elétrica, num investimento de 30 mil euros, para apoiar o trabalho das suas Equipas Comunitárias de Saúde Mental. O veículo visa intensificar a presença regular das equipas nos concelhos da região, levando cuidados continuados a pessoas com doença mental grave. O objetivo é encurtar distâncias geográficas e humanas, garantindo uma intervenção mais próxima do contexto de vida dos utentes

PS propõe aumento permanente para pensões e condiciona subida do ISP

O PS propôs a conversão de um eventual bónus pontual nas pensões num aumento permanente, uma das cerca de cem alterações ao OE2026. Eurico Brilhante Dias garantiu que as medidas mantêm o excedente orçamental e condicionou uma eventual subida do ISP à aprovação parlamentar, destinando essa receita para baixar o IVA de alimentos.

Proteção Civil valida plano de intervenção para emergências no Aeroporto da Madeira

O Serviço Regional de Proteção Civil aprovou o novo Plano Prévio de Intervenção para o Aeroporto da Madeira, documento que estabelece os procedimentos de atuação imediata em caso de acidente grave. A validação ocorreu durante a reunião semanal do Centro de Coordenação Operacional Regional e foi complementada por um exercício de larga escala que simulou um cenário de derrame e incêndio numa aeronave, envolvendo dezenas de viaturas e operacionais de múltiplas entidades

Bial integra Pedro Pereira Gonçalves no Conselho de Administração

A farmacêutica Bial anunciou hoje a cooptação de Pedro Pereira Gonçalves para o seu Conselho de Administração, na qualidade de membro não executivo. O executivo, com um percurso cimentado entre a alta finança e as políticas públicas, traz para a empresa de Porto uma visão estratégica que pretende alavancar a ambição de expansão internacional e o reforço das parcerias globais do grupo.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights