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O auditório acolheu um debate que poderia bem ter sido desenhado para daqui a uma década, mas que já hoje é premente. Na Conferência “O Itinerário do Sistema de Saúde até 2030”, integrada na “APDH 2025, Saúde Odisseia 2030”, o Painel 2 mergulhou no tema espinhoso e fascinante da “Inovação Tecnológica e Digital na Saúde”. Moderado por Teresa Magalhães, professora auxiliar convidada da ENSP NOVA, a sessão serviu-se de um tom mais prático do que especulativo, desmontando conceitos que soam a ficção científica para os trazer para a realidade dos hospitais e centros de saúde.
Sérgio Laranjo, da Nova Medical School, trouxe consigo não apenas o olhar do cardiologista, mas também o do investigador que manipula dados como quem ausculta um coração. A sua intervenção foi um périplo por ferramentas concretas. Descreveu, por exemplo, o desenvolvimento de um estetoscópio digital, impresso em 3D, que alia a captação de sons cardíacos ao registo de eletrocardiograma. Não se ficou, contudo, pela anedota tecnológica. Explicou como, através de algoritmos de inteligência artificial, se consegue não só detetar arritmias a partir de um eletrocardiograma com maior precisão média do que muitos profissionais, como transformar esse exame bidimensional numa imagem tridimensional que localiza a origem do problema. “Quer isto dizer que os vão substituir? Não de todo”, atalhou, prevenindo conclusões apressadas. “Mas que vão provavelmente conseguir melhorar o diagnóstico, poupar recursos e poupar tratamentos individuais? Sim, certamente.” A sua visão culmina no conceito de “gémeos digitais”, uma réplica virtual do coração de um doente, construída a partir da fusão de todos os seus dados clínicos, anatómicos e analíticos, permitindo uma medicina profundamente personalizada.
Do outro lado do espectro, mas complementar, posicionou-se Rafael Franco, coordenador do Laboratório de Inovação em Telessaúde da SPMS. A sua abordagem centrou-se menos na tecnologia em si e mais na sua absorção pelo tecido humano do sistema. “Toda a tecnologia depende da sua forma como são utilizadas”, começou por afirmar, introduzindo o conceito de “digisfera” – essa camada intangível, mas crítica, de interação entre humanos e máquinas. Para Franco, a verdadeira revolução não está no hardware ou no software mais avançado, mas na transformação cultural que permite integrá-los de forma harmoniosa nos processos de trabalho. Alertou para o risco de exclusão, tanto de utentes com baixa literacia digital como de profissionais resistentes, e defendeu uma orquestração inteligente das múltiplas iniciativas que pululam no SNS e no setor privado. Falou do registo de saúde eletrónico único não como uma miragem, mas como um projeto em curso que, pela primeira vez, imporá a obrigatoriedade de todos os players – públicos e privados – debitarem informação para uma plataforma central, colocando-a finalmente na mão do cidadão. “A grande revolução é esta”, sublinhou, “é a questão de todos contribuírem para proveito da informação e todos lançarem a informação para o cidadão poder ver.”
A moderação de Teresa Magalhães navegou por estas águas, forçando os ponteiros a apontarem para o dilema central: como equilibrar a fria eficiência dos algoritmos com a imprevisibilidade quente da relação humana? A pergunta pairou no ar, sem uma resposta única. Laranjo admitiu o desafio na formação médica, receando um “de-skilling” se a tecnologia for introduzida de forma brusca, mas também vendo nela a oportunidade de devolver tempo ao profissional para o que realmente importa: falar com o doente. Franco, por seu turno, evocou projetos como o Balcão SNS 24, que prevê a figura de um “mediador digital” nas juntas de freguesia, para não deixar ninguém para trás.
O debate que se seguiu, longe de encerrar o assunto, escancarou a sua complexidade. Falou-se da necessidade de “evangelizar” as equipas clínicas, da dificuldade em proteger tempo para a investigação numa realidade de sobrecarga assistencial, e da urgência de criar estruturas regulamentares ágeis que não asfixiem a inovação. No final, a sensação que ficou foi a de que o futuro da saúde portuguesa, seja em 2030 ou em 2035, não será escrito apenas por linhas de código ou por máquinas reluzentes. Será, isso sim, moldado pela capacidade – tantas vezes desordenada, cheia de avanços e recuos tipicamente humanos – de conseguir que essas ferramentas sirvam, de facto, as pessoas.
RE/HN



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