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Num país onde a morte permanece um tabu, a Ordem dos Psicólogos Portugueses lança um documento que procura mapear a geografia complexa do luto. “Vamos Falar Sobre Luto”, elaborado com a colaboração do psicólogo David Dias Neto, descreve um território emocional que vai muito além da perda por morte, abrangendo desde o desemprego até ao fim de uma amizade. A iniciativa surge num contexto em que se estima que uma em cada dez pessoas em luto desenvolve uma condição clinicamente significativa – o luto prolongado –, número que sobe para um em cada cinco em casos de morte traumática ou perda de filhos e cônjuges.
O documento, disponível através dos serviços da Ordem, sublinha que o luto não obedece a calendários. A noção de que existiriam fases sequenciais – negação, raiva, negociação, depressão e aceitação – é hoje considerada redutora. Em seu lugar, a publicação defende que cada pessoa constrói o seu próprio caminho, por vezes em ziguezague, com avanços e recuos que nada têm de patológico. A dor da perda manifesta-se de modos tão diversos quanto as histórias de cada um: pode significar agitação ou apatia, crises de choro ou uma estranha quietude, voracidade alimentar ou perda de apetite.
Entre as contribuições mais relevantes do trabalho está o capítulo dedicado às “perdas socialmente marginalizadas”. Aqui, lembra-se que a sociedade nem sempre valida sofrimentos como a morte de um animal de estimação, o diagnóstico de uma doença crónica ou o fim de um projeto de vida. São dores sem direito a velório, muitas vezes vividas na solidão porque o entorno não as reconhece como legitimamente dolorosas. O luto migratório – a saudade de um país, uma cultura ou uma rede de afectos – é outro desses processos invisíveis, tantas vezes interpretado como ingratidão perante uma nova oportunidade.
David Dias Neto, psicólogo clínico, alerta para os sinais de alarme. Quando, passados seis a doze meses, a pessoa mantém um sofrimento esmagador, incapacitante, com pensamentos constantes sobre quem perdeu e dificuldade em reencontrar um sentido para a vida, é essencial procurar ajuda. O luto prolongado, agora reconhecido como perturbação de saúde mental, aumenta o risco de depressão, perturbação de stresse pós-traumático e, em casos extremos, suicídio.
O guia dedica ainda atenção específica a crianças e adolescentes. Explica que a perceção da morte evolui com a idade: até aos cinco anos, as crianças tendem a vê-la como reversível; só por volta dos nove ou dez compreendem a sua universalidade. A forma como os adultos comunicam a perda é fundamental. Metáforas como “fez uma longa viagem” ou “transformou-se numa estrelinha” podem gerar confusão e expectativas de regresso. A linguagem clara, ainda que difícil, é a mais adequada.
Para os adolescentes, o luto pode ser particularmente desorientador. Numa fase de construção identitária, a morte de alguém próximo abala a perceção de invulnerabilidade típica desta idade. Podem alternar entre momentos de intensa tristeza e aparente indiferença, buscando refúgio mais nos pares do que na família. O equilíbrio entre proximidade e respeito pela autonomia é, aqui, fundamental.
O papel do psicólogo especializado é apresentado como o de um facilitador que ajuda a reconstruir significados. Não se trata de “superar” a perda, mas de aprender a relacionar-se com ela de outro modo. A intervenção pode passar por ajudar a regular emoções intensas, ressignificar a ligação a quem partiu ou apoiar as famílias na comunicação da morte às crianças.
O documento está acessível através do portal da Ordem dos Psicólogos e inclui recomendações para quem quer apoiar alguém em luto. Lembra, por exemplo, que a presença discreta – um convite para um passeio, uma oferta para tratar de refeições – vale mais do que palavras feitas. E desfaz um último mito: vestir roupa colorida durante o luto não é sinal de desrespeito, mas antes uma expressão da individualidade de cada dor.
PR/HN



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