Liliana Grade, RN, MSc; Especialista em enfermagem de Reabilitação; Especialista em gestão de unidades de saúde; Vogal (supl) do C Fiscal da APEGEL

Em tempo de greve onde “fica” a segurança do doente: a voz e o importância do enfermeiro gestor

11/04/2025

Nos dias de greve, algumas dúvidas se levantam relativamente às funções do enfermeiro gestor. Muitas vezes a maior pressão é exercida pela organização convocante e não pela organização laboral, para que o enfermeiro gestor, em caso de não adesão à greve, seja transferido das suas funções de gestão para assegurar cuidados diretos aos utentes.

No entanto, esta interpretação é muitas vezes simplificada e juridicamente discutível. Muitas vezes é ignorada a natureza e o dever intrínseco das funções de gestão em enfermagem.

Durante a procura do enquadramento ético e profissional sobre este tema, bastante é a legislação que específica os direitos e deveres do enfermeiro gestor.

Perante o Código Deontológico da Ordem dos Enfermeiros, vários artigos sustentam a veracidade da responsabilidade e da utilidade do enfermeiro enquanto gestor e líder num serviço de saúde. O Código Deontológico reforça a Responsabilidade para com a pessoa e a comunidade (Art.º 5.º) e a Responsabilidade pelos cuidados organizacionais e qualidade dos serviços (Art.º 13.) e ainda a Defesa das condições necessárias para a prática segura de enfermagem (Art.º 24.º).

O enfermeiro tem o dever ético de garantir condições seguras de prestação de cuidados e de se organizar para tal.

Quando um enfermeiro gestor prescinde das suas funções estruturantes durante a greve, pode comprometer tanto a segurança, bem como a organização global dos cuidados, contrariando desta forma os princípios éticos legislados.

Quando pesquisamos mais afincadamente sobre a problemática que existe durante o período de greve relativamente às funções, direitos e deveres dos profissionais de enfermagem, várias são as bases que sustentam esta temática.

Procuramos então “apoio” no Regulamento do Exercício para a Prática de Enfermagem (REPE) e aí encontramos as Funções do enfermeiro especialista/gestor. Ou seja, minuciosamente explicito, quais as responsabilidades do mesmo. Responsabilidades na coordenação, supervisão e gestão dos cuidados, responsabilidade profissional e prática de um exercício autónomo.

O enfermeiro gestor tem responsabilidade pela gestão, coordenação, qualidade e segurança dos cuidados. Ou seja, a gestão em enfermagem é ato próprio da profissão, não é dispensável nem complementar.

Ao “obrigar” o gestor a abandonar funções nucleares de coordenação, planeamento e supervisão contraria o REPE e desestrutura o serviço.

Quando se falar de tão marcante assunto e com vários “achismos” por parte das várias categorias profissionais e até várias profissões que existem na organização- sim porque nesta matéria toda a gente gosta de dar a sua “opinião” –  há uma tendência para o esquecimento da Legislação laboral sobre a greve (Lei 65/77) e do Código do Trabalho (Lei n.º 7/2009, Art.º 530.º a 543.º).

É comum que alguns princípios-chave desta legislação não “sejam” levados em conta, nomeadamente “O trabalhador que não faz greve trabalha na sua função habitual”; A entidade patronal não pode alterar a função para substituir grevistas e não pode haver desvio funcional coercivo.

Se o enfermeiro gestor não adere à greve, a lei determina que mantém as suas funções habituais, não que substitui os enfermeiros em greve. Quando tal não é cumprido, deslocar um enfermeiro gestor para cuidados diretos constitui violação da lei da greve e pode ser visto como substituição ilegal de grevistas.

Será correto que um enfermeiro gestor seja obrigado a “substituir” enfermeiros em greve, abandonando as suas funções?

Não há comprometimento da segurança do doente? E dotações seguras? Muito se fala nas dotações seguras…. no entanto nestes dias, os profissionais são reduzidos, a maioria das vezes, ao número de enfermeiros no domingo anterior à greve, ou ao turno da noite. Aqui já não há preocupação com as dotações seguras? Pois temos muito que refletir….

O enfermeiro gestor não é apenas mais um enfermeiro na escala, durante a greve, se optar por não aderir, a sua permanência em funções de gestão não é privilégio, mas sim é um dever profissional, ético e legal.

A afirmação de que deve prestar cuidados diretos não tem fundamento jurídico, e a sua aplicação põe em risco a segurança assistencial, a legalidade laboral e a própria dignidade da liderança de enfermagem.

Quando se defende que o enfermeiro gestor, ao não fazer greve, deve abandonar a gestão para assegurar cuidados diretos é desconhecer a lei, o REPE e o Código Deontológico e, sobretudo, ignorar que cuidar das condições para cuidar é também cuidar.

Logo, o enfermeiro gestor que decide permanecer em funções tem o dever — ético, legal e profissional — de continuar em gestão, não deve abdicar do seu papel.

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2 Comments

  1. Paula Franco

    Totalmente de acordo com toda a fundamentação apresentada.
    Lamentavelmente quem receia que o entendimento não seja o que aqui se defende e bem, é por vezes levado a aderir á greve, mesmo sem defender os motivos da mesma.

  2. Vanessa Barbosa

    Nao, nao poe em causa a segurança dos cuidados nem do serviço. Existe serviço aos fins de semana e nao ha enfermeiro gestor. O enfermeiro gestor é antes de tudo um enfermeiro, pode teer algumas caracteristicas que o colocam numa posição de liderança mas continua a ser enfermeiro, tanto como por exemplo um enfermeiro de reabilitação que quer faça greve a assegurar minimos quer nao faça greve tb passa para os cuidados gerais pq antes de tudo é um enfermeiro, so tem mais qualificações. Ridiculo e discutivel é os serviços minimos num serviço de intermamento terem de ser assegurados pelo mesmo numero de elementos q em qq dia util como alguns hospitais deste país exigem.

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