Bruno Maia: “A Ordem dos Médicos tem sido um ‘bastião’ do conservadorismo”

09/08/2022
Pôr um fim ao “elitismo e conservadorismo” da Ordem dos Médicos é um dos objetivos assumidos pelo candidato Bruno Maia. O neurologista, que cresceu com “uma nova geração (..) que acredita que os cuidados de saúde têm que ser universais e de qualidade técnica”, deixa fortes críticas à forma como a casa de todos os médicos tem atuado nos últimos anos.

“A Ordem dos Médicos não tem defendido todos os utentes”, diz o candidato que promete “uma ordem que não temos”. Questionado sobre o novo Estatuto do SNS e o regime de dedicação plena, Bruno Maia diz: “É um grande embuste”.

HealthNews (HN)- Candidata-se à Ordem dos Médicos contra “o conservadorismo e o elitismo”. O que é preciso mudar dentro da instituição?

Bruno Maia (BM)- Ao longo das últimas décadas, a Ordem dos Médicos tem sido um “bastião” do conservadorismo. Gostava que a ordem passasse a ser um referencial na defesa dos direitos humanos e dos utentes. A OM tem que ser também uma plataforma de respeito por aquilo que é a autonomia dos doentes… Vimos isso acontecer ao longo do tempo, não só na questão da interrupção da gravidez, como, mais recentemente, na questão da eutanásia, em que a ordem arroga-se a assumir uma posição por todos os médicos. É uma posição conservadora e que, no entender de muitos médicos e médicas, vai contra aquilo que é o respeito pela autonomia e as escolhas livres dos doentes. Portanto, gostava de trazer uma nova geração de médicos e médicas para o Serviço Nacional de Saúde que pensam de forma diferente e que gostavam, de facto, que ordem tivesse um papel ativo no combate às várias discriminações que existem na sociedade e nos cuidados de saúde, não só em relação aos utentes, mas também em relação aos próprios médicos.

A minha candidatura visa ainda combater o elitismo que a ordem sempre tem tido ao longo do tempo. A Ordem dos Médicos tem sido dirigida a partir das cúpulas dos médicos e tem criado uma ideia elitista destes profissionais junto da sociedade. Cresci com uma nova geração de médicos que cresceu no Serviço Nacional de Saúde e que acredita que os cuidados de saúde têm que ser universais e de qualidade técnica. Esta geração de médicos acredita que a ordem tem que estar aberta à sociedade.

HN- No dia em que anunciou formalmente a sua candidatura prometeu “uma Ordem dos Médicos que não temos”. Considera que até agora a defesa dos utentes e do Serviço Nacional de Saúde não têm estado no centro das prioridades?

BM- A Ordem dos Médicos não tem defendido todos os utentes… Quando a ordem dizia que as mulheres não podiam interromper uma gravidez por sua decisão ou quando a ordem diz que um doente, face a uma doença terminal, não pode antecipar a sua morte mostra que não está a defender todos os utentes. Quando a ordem se recusa a assumir que existe discriminação nos cuidados de saúde, a instituição não está a defender as mulheres, as pessoas racializadas e os cidadãos LGBT+.

A nível dos cuidados universais, a Ordem dos Médicos tem tido um papel importante. No entanto, tem tido algumas ações contraditórias. Por exemplo, na questão das centenas de jovens médicos que temos sem acesso à especialidade por ausência de vagas, aquilo que vemos há anos é um jogo de “passa culpas” entre o Governo e a ordem. E este jogo apenas tem agravado esse acesso. É um problema que tem que ser resolvido. Temos que ter uma ordem muito mais forte.

HN- No seu manifesto defende “uma ordem insubmissa aos interesses financeiros que ameaçam a prática médica”.  Ao certo, o que quer dizer com isto?

BM- Quero dizer que a ordem tem que combater dois aspetos fundamentais. Em primeiro lugar, as tentativas de gestão de saúde que estão unicamente viradas para os números e para a produção. A ordem tem que defender que os cuidados de saúde não se podem guiar só por números de consultas e cirurgias, mas sim por resultados em saúde da população. É assim que os médicos têm que ser avaliados e isso não tem sido feito até agora.

Em segundo lugar, a ordem tem que ter um papel mais ativo ao exigir, da parte dos privados, a apresentação de resultados. Sabemos que no SNS temos todos os dados de consultas, internamentos e cirurgias e no setor privado isso não acontece. Precisamos também desses dados para que os utentes, quando escolhem um cuidado de saúde, tenham acesso a essa informação e poderem optar em consciência.

HN- O novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde prevê que a Direção Executiva avalie o desempenho de respostas do SNS, através de inquéritos aos utentes e profissionais de saúde. Considera que esta medida vai ao encontro daquilo que diz que é preciso ser feito sobre a avaliação de resultados?

BM- Já temos muitos serviços de saúde, mesmo dentro do Serviço Nacional de Saúde, que realizam inquéritos de qualidade e satisfação, mas penso que temos de ir mais longe. O estatuto é absolutamente insubmisso numa questão fundamental que é: temos que trazer os utentes para o centro do sistema. Temos que os envolver na própria gestão do SNS. Temos que olhar para as comissões de utentes, doentes e locais e envolvê-las naquilo que é a tomada de decisão em cuidados de saúde. É importante que os utentes também sejam ouvidos e não apenas os conselhos de administração.

HN- Assumiu ser contra “a ideia errónea” de que “não importa se o prestador dos cuidados de saúde é do setor público ou privado, o que importa é que as pessoas tenham acesso à saúde”. Com isto quer dizer que a única forma de garantir cuidados de saúde de qualidade é através do Serviço Nacional de Saúde?

BM- Não. A única forma de garantir acesso universal dos cuidados de saúde é existindo um serviço público de saúde forte. O setor privado existia antes de haver SNS, mas se queremos que todos os cidadãos e cidadãs tenham acesso à saúde temos que ter um serviço público forte e de qualidade, capaz de dar resposta a qualquer doente independentemente do seu estatuto socioeconómico. Se olharmos para países como os Estados Unidos, onde não há um serviço de saúde público e universal, vemos que há milhares de pessoas que estão excluídas do acesso à Saúde. Sabemos também que antes de existir o SNS havia milhares de portugueses e portuguesas que não tinham acesso a cuidados de saúde de qualidade…

HN- Há quem diga que a atual situação de crise na saúde se deva a um problema ideológico por parte do Governo. Qual é a sua posição?

BM- A crise na saúde não é de agora e, portanto, não atravessou apenas este governo, mas também outros de direita. Do meu ponto de vista, as razões que explicam a degradação do SNS são a falta de recursos humanos e de investimento. Há muito tempo que deixamos fugir os médicos para o setor privado ou para o estrangeiro. Isto porque desestruturamos a carreira dos médicos. Com a criação das EPE e a introdução dos contratos individuais de trabalho pensava-se que iriam poupar dinheiro, mas foi uma jogada errada, estamos, pelo contrário, a gastar mais dinheiro.

HN- Entre as prioridades assumidas garante a defesa das carreiras médicas. De que forma a Ordem pode intervir neste âmbito?

BM- As carreiras médicas surgiram no seio da Ordem dos Médicos, ainda antes do SNS. Portanto, a história diz-nos que a ordem tem um papel fundamental ao defender as carreiras médicas. Ao exigir que os médicos têm acesso a uma carreira e de progredir ao longo da vida estamos a defender a qualidade dos cuidados e da prática da Medicina em Portugal.

HN- O novo regime de dedicação plena será voluntário e abrange apenas médicos, sendo obrigatório para as chefias. Considera que as medidas propostas irão responder às atuais necessidades sentidas nas unidades de saúde?

BM- Não. O novo regime de dedicação plena é um grande embuste… Aquilo que está escrito no estatuto do SNS é que quem entra em dedicação plena pode continuar a fazer medicina privada de forma paralela e a única coisa que está escrito é que ao regime de dedicação plena corresponde a um aumento da produção que pode ou não corresponder a um aumento da remuneração. Aquilo que eu defendo para o regime de exclusividade não é nada disto. Acho que o regime deve garantir que os médicos, e sobretudo as pessoas que dirigem os serviços, estão dedicados àquele serviço e têm uma majoração salarial por causa disso, mas que ao mesmo tempo têm uma série de exigências, nomeadamente no cumprimento dos objetivos. Esse regime de exclusividade poderia ser revogado a qualquer altura por incumprimento por parte do profissional. Não é isto que o novo regime propõe, propõe apenas que se o médico trabalhar mais, recebe mais. Portanto, acho que está errado e é um embuste em relação àquilo que foi o regime de exclusividade que existiu em Portugal e que é defendido, aliás, por todos os sindicatos médicos e pela atual ordem.

HN- Caso seja eleito em janeiro. O que podem os médicos esperar de si?

BM- Podem esperar um bastonário que respeita mais a diversidade dos médicos e dos utentes, podem esperar um bastonário que vai estar empenhado em combater aquilo que são atropelos aos diretos humanos e podem, sobretudo, esperar um bastonário profundamente empenhado em defender as carreiras dos médicos no SNS e no privado.

Entrevista de HealthNews, pode aceder às revistas completas aqui

 

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