Neste Dia Mundial do Rim, recordamos o problema da diminuição súbita da função de filtração glomerular, em entrevista com Filipa Silva Ferreira, médica interna de formação específica de Nefrologia no Centro Hospitalar de São João. Em Portugal, incidência de lesão renal crónica é particularmente elevada no doente crítico e no período pós-operatório. “Podemos dizer que é, em muitos casos, um dano colateral inevitável no contexto da doença aguda grave. Mas será sem dúvida útil identificá-la precocemente, para ajustarmos as intervenções terapêuticas a partir daí, sendo que alguns biomarcadores estão já aprovados e validados para predizer o risco de LRA grave”, alerta a especialista.
HealthNews (HN)- O que é a lesão renal aguda (LRA) e quais são as suas principais causas?
Filipa Silva Ferreira (FSF)- O rim apresenta várias funções, mas, geralmente, definimos a lesão renal aguda pela diminuição súbita da sua função de filtração glomerular, e na prática clínica conseguimos avaliá-lo pelo doseamento da creatinina sérica e pela monitorização do débito urinário, que nesse caso estará diminuído. Mas estes são marcadores funcionais, e não necessariamente tradutores de lesão estrutural ou dano a nível histológico.Em relação às causas, estas diferem um pouco consoante o contexto em que estamos inseridos.
Em países desenvolvidos, como é o caso de Portugal, a grande maioria dos casos de lesão renal aguda ocorre em contexto hospitalar, sendo que a incidência em doentes internados ronda os 30%. Se estivermos num contexto de países em desenvolvimento, predominam muitas vezes as causas adquiridas na comunidade, associado a infeções, desidratação, por más condições de saúde pública.
Mas, no nosso contexto, em Portugal, muitos episódios de lesão renal aguda ocorrem em meio intrahospitalar e continuam a predominar as causas pré-renais, muitas vezes também por situações de desidratação ou, mais corretamente, de hipovolemia, não tanto, como nos países subdesenvolvidos, por diarreias ou má qualidade da água e de cuidados de saúde, mas, por exemplo, no contexto de introdução de determinados fármacos, como os diuréticos; outros fármacos podem ser também nefrotóxicos por diversos mecanismos, como os antibióticos; alguns agentes de quimioterapia; e nos doentes que são internados por infeções, nomeadamente se forem graves, com admissão em cuidados intensivos, é muito comum a lesão renal aguda surgir como uma consequência desse quadro infeccioso grave.
HN- A LRA pode ser prevenida?
FSF- Sim. Sobretudo quando falamos dos casos de lesão renal aguda que ocorrem em meio hospitalar, esta pode, em algumas situações – nem sempre –, ser prevenida. E se calhar eu diria, mais do que prevenida, quando identificada, não ser perpetuada e agravada por ações médicas. Para isso, em primeiro lugar, teremos sempre que identificar os doentes que estão em risco – que têm alguma condição que lhes aumenta a probabilidade de desenvolver lesão renal aguda. A partir daí podemos tomar uma série de medidas, adaptando as nossas intervenções para prevenir ou, se a lesão renal aguda já estiver instalada, evitar que se agrave ou que seja perpetuada no tempo. Por exemplo, ajustar a fluidoterapia para que o doente se mantenha normovolemico, ajustar fármacos que o doente fazia em casa à condição aguda que motivou o internamento. Se houver necessidade de introdução de novos fármacos, por exemplo antibióticos, terá que se ajustar a dose de acordo com a existência ou não de lesão renal aguda.
HN- Que consequências é que a LRA pode ter no organismo a médio e longo prazo?
FSF- Falando ainda no ambiente intrahospitalar, o desenvolvimento de lesão renal aguda aumenta a mortalidade intrahospitalar, sobretudo se os doentes tiverem uma lesão renal aguda grave, em que há necessidade de terapêutica de substituição da função renal. Nestes, a mortalidade ronda os 50%.
Além da função de filtração, o rim é responsável pela regulação da homeostasia da água, portanto, regulação do conteúdo corporal de água; regulação de vários eletrólitos, como o potássio; regulação ácido-base. E portanto, perante disfunção destes mecanismos, haverá consequências deletérias nos outros sistemas de órgãos (cardíaco, respiratório, neurológico), e é isso que justifica que um doente com lesão renal aguda, mesmo que esse não tenha sido o motivo primário que leva o doente ao hospital, tenha realmente uma mortalidade aumentada.
Se sobreviver ao internamento, há um risco acrescido de mortalidade após a alta. Esta parece ser causada sobretudo por doença cardiovascular, mas também – algo se calhar menos esperado – por doenças neoplásicas. Portanto, um doente que teve uma lesão renal aguda tem um risco acrescido de neoplasia, nomeadamente do trato geniturinário.
Por outro lado, estes doentes têm maior risco de desenvolver doença renal crónica. Espera-se que o doente recupere porque o rim tem alguma capacidade de regeneração. Alguns nefrónios serão perdidos, mas outros conseguirão compensar. Mas, se a lesão renal aguda for muito grave, essa capacidade de recuperação será limitada e, portanto, alguns doentes, infelizmente, saem do internamento em diálise, ou podem ter uma recuperação apenas parcial e evoluir para um quadro de doença renal crónica.
HN- O que teria de ser alterado na prática diária para reduzir a incidência ou consequências da LRA?
FSF- Eu acho que o principal será uma maior consciencialização dos colegas, médicos e outros profissionais de saúde, que não estão diretamente envolvidos na nefrologia para a elevada incidência de lesão renal aguda nos doentes internados, ou mesmo em doentes em ambulatório. Na consulta, temos várias intervenções médicas, por exemplo a introdução de alguns fármacos que são comumente utilizados por várias especialidades, como os hipertensores, os diuréticos, que podem causar lesão renal aguda. Os colegas têm que estar conscientes disso para monitorizar. Não significa que os fármacos não possam ser usados, mesmo em doentes que até já tenham alguma deterioração da função renal, mas temos que saber que este é um efeito possível para, de forma proativa, verificarmos se houve deterioração da função renal e, assim, intervir precocemente.
O mesmo nos doentes internados. Num doente internado por uma infeção numa enfermaria cirúrgica, se o colega não estiver alerta de que a lesão renal aguda pode ser uma consequência dessa infeção e não dosear creatinina, não monitorizar débito urinário, podemo-nos aperceber da instalação da lesão renal aguda tardiamente, quando já é muito grave e dá sintomas, porque numa fase inicial, muitas vezes, a alteração é apenas analítica.
HN- Que ferramentas de diagnóstico estão disponíveis atualmente?
FSF- A forma que nós temos de diagnosticar a lesão renal aguda é pelo doseamento da creatinina sérica e pela quantificação do débito urinário. Geralmente referimo-nos ao débito urinário em 24 horas. No entanto, estes são marcadores imperfeitos, com sensibilidade e especificidade limitadas, e não traduzem lesão estrutural. São marcadores funcionais. Atualmente, o único método para ver se há lesão histológica é através da biópsia renal. Sendo este um método invasivo e com custos associados, é feito só em casos específicos.
HN- Que papel desempenham as estratégias baseadas em biomarcadores na LRA?
FSF- Será uma ferramenta útil para nos auxiliar na abordagem dos doentes com lesão renal aguda, porque a creatinina e a monitorização do débito urinário são marcadores apenas funcionais, e não de dano. Há várias situações clínicas em que o aumento da creatinina ou diminuição do débito urinário, tradutores de diminuição da taxa de filtração glomerular, se devem apenas a um efeito hemodinâmico, e não a um dano renal propriamente dito.
O exemplo paradigmático disto, que é cada vez mais frequente na nossa prática clínica, não só de internamento, mas de consulta, é o doente com o que nós designamos por síndrome cardiorrenal. Estes são doentes que têm disfunção cardíaca e que, como consequência, seja por baixo débito ou, na maior parte dos casos, por congestão venosa causada pela retenção hidrossalina, têm um aumento da creatinina, acompanhado ou não de diminuição do débito urinário. Esse aumento da creatinina deve-se apenas a este efeito hemodinâmico, e rapidamente, se nós corrigirmos o estado de volemia do doente, a creatinina normaliza (ou regressa aos valores habituais do doente).
Provavelmente, se nós fôssemos fazer biópsia a estes doentes, veríamos que não há dano estrutural. E é aqui que os biomarcadores nos podem ajudar – precisamente a deslindar melhor estes casos. Há quem diga que esses biomarcadores poderão ser para a nefrologia o que a troponina é para os cardiologistas. Na nefrologia, ainda não temos validado esse marcador que distinga disfunção de lesão, mas é isso que esperamos que os biomarcadores representem para nós no futuro.
HN- Considera que a introdução de biomarcadores de stress renal oferece uma nova abordagem ao diagnóstico de LRA?
FSF- Sim. Acabei por já falar um bocadinho disso, da utilidade que podemos conseguir com a introdução dos biomarcadores para a abordagem destes casos de lesão renal aguda, sobretudo quando há esta dúvida: se a lesão renal aguda resulta apenas de um efeito hemodinâmico ou há realmente dano estrutural. Claro que, atualmente, tentamos fazê-lo, através da história clínica, de achados de exame físico e de outros marcadores analíticos. Mas um doente pode ter várias situações patológicas em simultâneo; portanto, os biomarcadores serão úteis nesse sentido.
HN- Que tipos de pacientes estão mais em risco de desenvolver LRA?
FSF- Há algumas condições patológicas que aumentam o risco de desenvolver lesão renal aguda, nomeadamente: a existência prévia de doença cardíaca; a existência prévia de doença renal crónica; doentes com doença hepática; malformações congénitas do trato urinário; doentes que têm diminuição da massa renal – por exemplo, tiveram que fazer uma nefrectomia no contexto de uma neoplasia. Além disso, cada vez mais vemos situações de lesão renal aguda associada a alguns fármacos de quimioterapia e de imunoterapia (uma área que tem crescido muito nos últimos tempos). E finalmente, doentes admitidos em cuidados intensivos no contexto da doença grave ou no pós-operatório, nomeadamente no pós-operatório de cirurgia cardíaca, enfrentam um risco acrescido de lesão renal aguda.
HN- Considera que os cuidados intensivos e as unidades pós-operatórias deveriam focar-se mais nos cuidados nefrológicos?
FSF- A incidência de LRA é particularmente elevada no doente crítico e no período pós-operatório, nomeadamente após cirurgia cardíaca. A ocorrência de LRA nestes cenários aumenta não só a morbimortalidade, mas também os custos associados ao tratamento, uma vez que é frequente evoluírem para LRA grave com necessidade de terapêutica de substituição da função renal contínua. Portanto, sem dúvida que essa deve ser uma preocupação nessas unidades; mas creio que os colegas que lá trabalham já estão consciencializados para isso. Contudo, é importante ressalvar que, no contexto do doente crítico, nem sempre será possível prevenir a LRA. Podemos dizer que é, em muitos casos, um dano colateral inevitável no contexto da doença aguda grave. Mas será sem dúvida útil identificá-la precocemente, para ajustarmos as intervenções terapêuticas a partir daí, sendo que alguns biomarcadores estão já aprovados e validados para predizer o risco de LRA grave neste grupo de doentes.
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