Acácio Gouveia
Especialista em Medicina Geral e Familiar / aamgouveia55@gmail.com

O Papa em Timor Leste

09/25/2024

“Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber.”

Mateus 6.25

 

Francisco I, na sua recente visita a Timor Leste, exortou os timorenses a “continuem a ter filhos”, o que, segundo o jornal Diligente, sua versão on-line, terá causado “apreensão” e soado como apelo “desconetado da realidade” do país (1).

Vejamos: estamos a falar do país com a mais alta taxa de crescimento populacional do sudeste asiático: 1,8%/ano (1). Em 2002, os timorenses eram 900 mil, tendo ultrapassado o milhão e quatrocentos anos no ano passado, e está previsto vir a ultrapassar o milhão e meio de habitantes antes do fim da década (2). Daqui decorre que 65% dos timorenses têm menos de trinta anos e 75% menos de trinta e cinco (1). Porém, apenas 30% dos timorenses encontram empregam no setor formal da economia, ou seja, apenas estes têm contrato de trabalho (1). A taxa de fertilidade, apesar de ter vindo a diminuir de forma acentuada, é ainda elevada: 3,6 crianças/mulher, 4,0 nas zonas rurais e 3,0 em Dili (3).

Por outro lado, é dos países mais pobres do mundo. É o segundo país asiático com mais insegurança alimentar, apenas ultrapassado pelo Afeganistão (1). A malnutrição infantil atinge 47% das crianças até aos cinco anos e era, até 2022, o quarto país do mundo com mais casos de nanismo infantil (ultrapassando mesmo, na altura, o Afeganistão) (1). Quanto à anemia, atingia em 2023 63% das crianças com menos de cinco anos (5), 23% das mulheres em idade reprodutiva em 2014 (6) e 37%, das grávidas, valor que se tem vindo a agravar desde 2009 (7).

Debrucemo-nos sobre a assistência à maternidade. A mortalidade materna, embora em decrescendo, registou 195 óbitos/100 mil de partos, um dos valores mais elevados na Ásia (4). A mortalidade neonatal, também em 2022, foi de vinte e dois por 1000 nascimentos (8). Estamos a falar de 43% de partos sem qualquer assistência por profissionais de saúde em 2021, sendo, contudo, de registar uma notável melhoria no ano seguinte: 14% (3).

O planeamento familiar (PF) em Timor Leste, devidamente pastoreado pela Igreja, roça o anedótico. Note-se que a Igreja tem assento formal nas equipes governamentais que definem as políticas de saúde da mulher. As solteiras não têm acesso a consultas de PF, o que poderá ajudar a explicar a desastrosa taxa de gravidez na adolescência: quarenta e dois casos por 1000 partos (4). Apenas 23% das mulheres casadas em idade fértil tiveram usaram contracetivos, tendo esse valor diminuído para 16% em 2022 (3) e a autonomia da escolha só atinge 36% deste grupo (4). O VIH nas grávidas aumentou dez vezes nos últimos cinco anos (4). Como se não bastasse, a violência contra mulheres atinge, segundo as diversas fontes, entre 38% e mais 50% da população feminina.

Resumindo: a perspetiva que se oferece às potenciais gestantes e às crianças que venham a nascer é bastante sombria. Portanto, o Papa aconselhou muito mal os timorenses. O que as crianças, jovens e as mulheres timorenses não necessitam, para ultrapassar a calamitosa situação em que se encontra o país, é um incremento populacional de características neoplásicas, que a Santa Sé insiste em exortar. Manter alta natalidade em Timor significa lançar mais crianças na miséria, analfabetismo e desemprego; significa condenar à morte mais parturientes e nascituros; significa aprofundar o subdesenvolvimento. Ao encomendar aos políticos a resolução dos problemas, para todos efeitos gerados pelos seus próprios apelos natalistas, o Santo Padre cai no pecado do farisaísmo. Sem uma corajosa política de planeamento familiar não estão criadas as condições para o desenvolvimento de Timor Leste.

Embora Francisco I tenha ganho, com toda a justiça, reputação de corajoso ao combater, sem meias tintas, a pedofilia na Igreja e por ter rompido com opróbrio contra a homossexualidade, mantém traços de fundamentalismo em matéria de doutrina sexual, que aliás o colocam em contradição com outras mensagens da sua autoria. Este Papa é também inovador ao abraçar a causa ecologista (curiosamente em sintonia com S. Francisco de Assis), mas o apelo ao crescimento populacional deixado em Timor Leste é contrário à sustentabilidade. Mesmo com a substancial ajuda externa que fui para este país, não sairá do subdesenvolvimento enquanto estiver atolado num incremento populacional insustentável.

Ficou tristemente celebre o anátema que João Paulo II lançou contra o preservativo em plena epidemia da SIDA nos finais do passado século. Infelizmente, Francisco I deu mostras de se manter fiel a este legado fundamentalista, avesso ao conhecimento científico.

A postura do Vaticano merece reparo em duas vertentes. Por um lado, insiste em manter resquícios de conflitualidade com a ciência, nomeadamente no que toca à saúde da mulher; por outro, a misoginia da Igreja, continua a prescrever uma sexualidade reprimida e doentia, sobretudo, para com as mulheres.

 

 

 

 

 

 

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