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Impressões do confinamento
Como médico, ao contrário de muitos outros que nem a casa podiam ir, não posso dizer que tenha estado confinado. Posso até dizer que para lá do inconveniente relativo de não ter acesso a lojas, a que já não ia muito, e restaurantes, não fui afetado pelo dito confinamento. Cinemas e teatros, confesso que já não frequentava assiduamente. Compras para entretenimento e material de estudo, há anos que quase só as faço pela internet. Sendo honesto, este confinamento permitiu-me demorar entre 5 a 6 minutos para percorrer os 4 Km a que a minha casa está do IPO de Lisboa. Já habitualmente chegava cedo ao trabalho, entre as 7h e 30m e as 8h, até porque sempre preferi começar cedo, evitar trânsito e estacionar o carro sem problemas, literalmente à porta do edifício onde passo a maior parte do meu tempo. A minha única peregrinação semanal, a caminho do supermercado, manteve-se com ainda maior facilidade do que antes da COVID-19. Comida fora, passou a ser dentro e à distância de um telemóvel. Não, não tenho razões para me queixar pessoalmente. Não perdi o emprego, não fui para layoff, tenho casa onde pude continuar a viver com todo o conforto.
O IPO de Lisboa, pela sua natureza e tipo de doentes, tem sido mantido livre da COVID-19. Com alguma sorte, diga-se. As medidas de proteção individual para o pessoal foram introduzidas tardiamente e no meu entender ainda são subótimas. Só desde há 3 semanas é que posso afirmar que todos os doentes que observo em consulta usam máscara. Com algum receio e muita perseverança nas lavagens de mãos, lá fui vendo os doentes apenas munido de máscara cirúrgica, sem viseira de proteção e vestido com fato de bloco e a bata regulamentar, não descartável. Era o que havia e o que há para os médicos que só fazem consultas como é o meu caso. Correu, até agora, bem. Acabei por passar a levar uns óculos de proteção industrial, que em tempos tinha comprado numa loja de DIY. Outros, mais felizes, foram brindados com umas viseiras que trouxeram dos setores com internamento. Não chegou para todos.
A fase inicial, a da completa indefinição, quando as autoridades nacionais e internacionais andavam aos papeis, teve muito de caricato. Não era claro se poderíamos manter a atividade de quimioterapia de alta-dose, que acabou por ser interrompida e só agora foi retomada, e chegou-se ao anedótico de, na falta de EPI, acabarmos a comprar, com a devida contribuição de cada um – ainda estou a dever a minha – uns fatos de sulfatador que se improvisariam para a nobre função de proteção anti-vírus. Ainda não foram usados.
Houve também aquele ritual de adiar consultas não urgentes, o que em hemato-oncologia tem muito que se lhe diga, com a conclusão evidente de que os adiamentos acabaram por ser poucos e para prazos muito breves. Mas houve faltas recorrentes de doentes em pânico a quem bem tentámos convencer de que não deveriam deixar de vir ao Hospital.
Que eu saiba, até agora não faleceu nenhum dos nossos doentes com a COVID-19. Souberam proteger-se e foram protegidos. Não adiei nenhum tratamento de quimioterapia e se houve atrasos agravados nas áreas de diagnóstico eles apenas foram devidos à necessidade de dividir equipas de médicos e técnicos, num cenário com já enorme escassez de oferta em função da procura. A imposição de equipas em espelho levou a que os médicos alocados às enfermarias de algumas especialidades não fizessem trabalho de consulta, com a consequente necessidade de suprir as falhas nas consultas pelos que aí ficaram alocados em permanência. Perdeu-se atividade de cirurgia de ambulatório, mas a atividade dos blocos continuou com toda a normalidade, assim me dizem.
Refira-se que a COVID-19, apesar de todo o IPO de Lisboa ter feito o seu melhor para não prejudicar os doentes, aconteceu quando o Instituto ainda está em fase de remodelação do seu Pavilhão Central e tem serviços em contentores. Num hospital antigo e com estrutura pavilhonar, muito subdimensionado para os serviços que oferece, foi preciso desenhar circuitos novos, alocar equipas para um “covidário”, de espera e tampão, que se instalou num pré-fabricado e, mandar erigir coberturas em material impermeável para que os doentes possam esperar pela sua hora de entrada nos edifícios. Ao frio, sem local para se sentarem, mas sem chuva ou sol. Há, igualmente, obras a decorrer que não foram interrompidas. Mas temo que o mais grave venha a ser um novo adiamento, sempre por falta de fundos ou vontade política, na construção de um pavilhão adicional que já deveria ter sido construído há 30 anos. Pior ainda quando há obras a decorrer na Praça de Espanha que irão dificultar o acesso ao IPO e podem comprometer ainda mais, se isso for possível, o plano de expansão de que precisamos urgentemente há quase meio-século.
As medidas de limitação de acesso de doentes aos hospitais foram, no meu entender, mais prejudiciais de que todo o impacto potencial e real da COVID-19. Há contas, em termos de morbilidade, mortalidade e custos para o SNS q ue ainda terão de ser feitas. A COVID-19 será muito mais cara pelo que não se fez do que pelos danos que ela causou. E é muito provável que as medidas tomadas, imprescindíveis na dimensão que tiveram por não terem sido implementadas mais cedo, tenham sido muito insuficientes para o futuro próximo. Seguramente não preveniram vagas pandémicas posteriores para as quais continuamos a não estar preparados. Em boa verdade, durante os dois meses passados, apenas remendámos situações, mudámos layouts de serviços com sacrifício da sua capacidade e multifuncionalidade, rodámos pessoal e andámos mais ou menos mascarados. Ainda vai ser preciso reavaliar os dados nacionais e internacionais, olhar com atenção para a Suécia e Alemanha e ver quem morreu, antes de nos confortarmos com termos tido menos mortes do que uns e lamentarmos termos tido mais mortalidade do que outros. Penso que a partir do momento em que não fomos inteligentes na forma como lidámos com as fronteiras, com as quarentenas iniciais de quem tinha de ser confinado, com os testes ao pessoal dos lares cujos utentes foram deficientemente protegidos, acabaríamos a ter de ter uma política de Estado de Emergência. Se tivéssemos sido mais lúcidos em janeiro, mesmo em termos Europeus, muitas das medidas economicamente desastrosas poderiam ter sido evitadas.
É certo que, para já, fomos poupados à mortandade de outros Países. Êxito que merecerá ser sempre assinalado. Ficou demonstrado que com o equipamento adequado se poderá fazer mais em termos de medicina à distância. A população e os políticos, embora eu temo que depressa se esquecerão, talvez compreendam melhor a importância da saúde. Mas, bem no fundo, todos sabemos que passada a crise, com mais ou menos doente, vai ficar tudo na mesma e agora com a infalível desculpa de que “não há dinheiro”. Então, se não há, gastem bem gasto, avaliem necessidades, planeiam o que tem de ser feito. Parafraseando o grande Vasco Santana, “Pandemias há muitas” e SNS há só um. Ou o que resta dele.
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