Mário da Silva Moura Presidente Honorário da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

Os médicos de família, a covid19 e a relação médico-paciente

05/19/2020

[xyz-ips snippet=”Excerpto”]

Os médicos de família, a covid19 e a relação médico-paciente

19/05/2020 | Covid 19, Opinião

Após a criação do Serviço Nacional de Saúde e após o nascimento dos Centros de Saúde, os jovens médicos de Clínica Geral passaram a ter uma carreira, a par da Carreira Hospitalar e da de Saúde Pública. A especialidade e a carreira de Clínica Geral tinha forçosamente de ter um período de formação específica a partir daí como qualquer das outras especialidades. Mas havia que dar aos jovens médicos formados nos últimos três ou quatro anos, igualmente as bases da recém criada especialidade para o que foram criados os Institutos de Clínica Geral. Todo esse esforço de formação exigido pela criação do Serviço Nacional de Saúde teve um contributo fundamental da, igualmente recém-criada, Associação Portuguesa de Clínica Geral onde uma elite de jovens médicos foram aprofundando o que devia ser o verdadeiro conteúdo da jovem especialidade e desenvolvendo uma luta bem forte para ser devidamente considerada pelas várias especialidades essencialmente tecnológicas e hospitalares.

Tornou-se rapidamente consciência de que um Médico de Clínica Geral tinha de levar em conta o meio envolvente dos pacientes, isto é, contar com a família, com as características da sociedade em que se integrava, com os seus objetivos e os seus anseios motivadores.

Do desenvolvimento e aprofundamento deste binário paciente/meio ambiente e com o estudo do que se passava noutros países, foi-se criando a noção de Médico de Família, e a especialidade passou a chamar-se com propriedade “Medicina Familiar” em que sobressai como elemento fundamental a relação médico/paciente.

Tal se enraizou tão profundamente que essa “relação médico/paciente” vai ser proposta às Instâncias Internacionais como Património Imaterial da Humanidade”. Toda a organização dos chamados Cuidados de Saúde Primários se foi aprimorando ano após ano chegando aos nossos tempos com uma cobertura razoável da população do país, faltando ainda muito para se ter uns Cuidados de Saúde Primários que cubram de maneira satisfatória toda a população. Nos vários Ministérios da Saúde, uns tinham mais atenção á Medicina Familiar, outros punham a tónica das suas preocupações na vida hospitalar que atinge os píncaros da fama com os transplantes e a alta tecnologia.

Eis que, inesperadamente, surge uma pandemia provocada por um vírus que em três ou quatro meses se estende por todo o mundo com uma contagiosidade e uma gravidade excecionais, fazendo colapsar nalguns países a rede hospitalar. Entre nós, o nosso SNS foi-se aguentando e houve necessidade de envolver os Médicos de Família no sistema que se opunha à virulência e rapidez da epidemia da “covid19” alterando todo o edifício dos nossos Cuidados de Saúde Primários. Como ninguém sabe quando e como vai terminar esta pandemia corre-se o risco de se desmantelar todo o edifício da Medicina Familiar que levou anos a chegar a uma posição muito bem aceite tanto pela maioria dos médicos como dos pacientes já ligados por verdadeiros laços afetivos com o “seu médico de família”.

Embora os hospitais sejam um verdadeiro símbolo da Medicina moderna para uma boa parte das pessoas, a realidade é que os Cuidados de Saúde Primários resolvem na prática uns 80% das queixas dos pacientes pois muitas dessas queixas são provocadas por problemas acantonados no subconsciente do paciente (ás vezes originados na infância) ou por problemas relacionais ou frustrações na vida trepidante em que se vive. E agora com a destruição de muitos dos equilíbrios e das estruturas da nossa sociedade provocados pelas medidas tomadas pelos governos numa tentativa de estabelecer uma barreira ao alastramento da pandemia, ninguém sabe como se vai reconstruir uma sociedade que estava já a ser acusada com razão de estar a tornar a nossa Terra Mãe quase inabitável num futuro não muito afastado. E no meio desse marasmo que não sabemos quando chega, a Medicina Familiar é absolutamente essencial para acudir ao desmantelamento social e familiar que se traduzirá, sem qualquer dúvida, em muitos padecimentos para os quais o Médico de Família (e até os psiquiatras) serão essenciais. O Médico de Família corre por isso grande risco no futuro que não sabemos bem se está próximo ou se está ainda muito longe no tempo.

1 Comment

  1. Manuel Luciano Correia Silva

    Reflexão profunda e brilhante de quem sabe o que sente e gosta de o exprimir/transmitir… Obrigado pela clarividência da análise… Um enorme abraço de respeito para o Dr. Mário Silva Moura – uma referência de pessoa pensante e humanista.
    Manuel Luciano

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

MAIS LIDAS

Share This