Dia da Sensibilização e consciencialização da Distrofia Muscular de Duchenne: “Um dos maiores desafios de cada médico envolvido é conseguir ver o doente como um todo”

09/07/2020
No dia da sensibilização e consciencialização da Distrofia Muscular de Duchenne, o Dr. Miguel Félix, coordenador da Unidade de Pneumologia Pediátrica do Hospital Pediátrico de Coimbra, falou-nos sobre as patologias da doença, as suas implicações e as infraestruturas existentes em Portugal para o combate à doença.

A distrofia muscular de Duchenne é uma doença genética que afeta apenas o sexo masculino e que consiste sobretudo na perda de força na generalidade dos músculos do corpo. No dia da sensibilização e consciencialização da Distrofia Muscular de Duchenne, o Dr. Miguel Félix, coordenador da Unidade de Pneumologia Pediátrica do Hospital Pediátrico de Coimbra e Presidente da Direção da Sociedade Portuguesa de Pneumologia Pediátrica e Sono, e especialista na doença com a qual lida diariamente. Em entrevista, falou-nos sobre as patologias da doença, as suas implicações e as infraestruturas existentes em Portugal para o combate à doença.

Como é que se contrai Duchenne e quais os principais sintomas? Também, quais os primeiros a surgir?

A distrofia muscular de Duchenne é uma doença genética que resulta de uma mutação localizada no cromossoma X, numa região que codifica a produção de distrofina, proteína fundamental para a normal integridade do músculo, que nestes casos acaba por estar ausente do músculo destes doentes, levando à sua degradação progressiva. Esta distrofia muscular é uma doença rara e que se carateriza clinicamente por uma degradação progressiva dos músculos esqueléticos, originando uma diminuição da força muscular, iniciada nos primeiros anos de vida das crianças.

Em termos clínicos os principais sintomas da doença são na sua quase totalidade consequência dessa falta progressiva de força e abrangem, entre outras: a dificuldade progressiva na marcha, acabando por se tornar impossível de andar, falta de força dos músculos respiratórios com insuficiência respiratória progressiva, dificuldades na alimentação (deglutição e mastigação) com consequências nutricionais e deformidades posturais e osteoarticulares. Em casos excecionais pode haver dificuldades de aprendizagem e de linguagem.

Por volta de que idades costuma aparecer a doença e como evolui ao longo do tempo num caso “normal”?

A doença tem os seus primeiros sintomas durante a infância, tornando-se mais visíveis entre os 2 e os 4 anos. Por norma, o desenvolvimento motor é quase sempre normal até essa idade; no entanto, também há casos em que se manifesta um atraso na marcha logo ao início.  Numa primeira fase os músculos mais afetados pela fraqueza são os proximais dos membros inferiores, sendo que a fraqueza muscular se manifesta por alterações progressivas da marcha, corrida ou subida de degraus; por exemplo, as crianças caminham mais em pontas, de forma instável, com quedas frequentes. Com o avançar do tempo e, por volta dos 5-6 anos, é notório um aumento de volume dos gémeos, que se apresentam muito hipertrofiados.

No início da adolescência é quando, normalmente, se dá a perda total da marcha, podendo variar desde os 8-9 anos até, mais raramente, perto dos 18 anos. Com o passar do tempo, e de forma mais lenta, a fraqueza muscular vai-se notando cada vez mais no tronco e membros superiores, acabando por condicionar escoliose, insuficiência respiratória progressiva e, em alguns casos dificuldade na alimentação. Cerca de metade dos doentes no final da segunda década de vida têm algum atingimento do músculo cardíaco, de gravidade variável.

Sendo esta uma doença essencialmente genética, afeta a todos por igual, ou existem diferenças a nível de género, estrato social, etcétera?

Por definição, uma doença genética tem a mesma incidência em qualquer contexto ou estrato social, económico ou cultural. Sendo uma doença de transmissão recessiva ligada ao cromossoma X apenas afeta indivíduos de género masculino, ocorrendo em cerca de 1 em cada 3500 nascimentos de bebés desse género.

Com o progredir da doença, quais os cuidados a ter para manter um nível de vida melhor quanto possível?

Existem recomendações internacionais para a prestação de cuidados de excelência aos pacientes com distrofia muscular de Duchenne. A revisão mais recente destes standards de cuidados data de 2018 e refere as numerosas atitudes e cuidados que devem ser implementados, incluindo a sua periodicidade e calendarização. O número e diversidade destas intervenções e avaliações tornaria fastidioso a sua enumeração detalhada nesta resposta mas, de um modo geral, todos os cuidados e avaliações necessários e indicados são prestados de uma forma multidisciplinar, englobando cuidados e avaliações nas áreas neuromuscular, de reabilitação, endocrinológicas, gastrointestinais e nutricionais, respiratória, cardiovascular, ortopédica e psicossocial. Diria que o fator mais importante para que o seguimento destes pacientes garanta a melhor qualidade de vida é o seu seguimento por equipas multidisciplinares diferenciadas em patologias neuromusculares, em articulação com outros níveis de prestação de cuidados de saúde.

Quão importantes são as provas de função respiratória, e porquê?

Existe claramente uma grande importância na avaliação periódica da função respiratória, reforçada nos standards internacionais de cuidados respiratórios para pacientes com distrofia muscular de Duchenne, dependendo sempre da fase da doença em que o doente se encontra. Durante a fase ambulatória, ou seja, antes de se perder a marcha, deve-se fazer uma avaliação da função respiratória pelo menos uma vez por ano, desde que a criança tenha já idade suficiente para colaborar. Assim que a criança perder por completo a marcha essa avaliação deve ser feita com mais frequência, pelo menos semestralmente. Esta avaliação é extremamente importante, tanto no sentido de permitir detetar precocemente o envolvimento respiratório, como no seguimento do progresso do envolvimento respiratório durante toda a vida do paciente. Mesmo no caso dos doentes com insuficiência respiratória e a fazer todos os tratamentos apropriados, conhecer a evolução da função respiratória ajuda a ajustar esses cuidados e a fornecer informações relevantes para outras áreas.

No que diz respeito ao panorama internacional, Portugal parece-lhe um país competente para com os pacientes com Duchenne?

As equipas multidisciplinares que seguem doentes com distrofia de Duchenne em Portugal são compostas por profissionais de saúde com as competências e conhecimentos necessários para que esse acompanhamento seja otimizado, visto que sendo centralizadas num número relativamente reduzido de centros hospitalares, cuidam de números significativos de pacientes, aumentando assim a sua experiência e competência. Naturalmente, e ainda assim, há sempre espaço e oportunidades para melhoria dos cuidados prestados, nomeadamente no que diz respeito a melhorar a integração, coordenação e complementaridade entre os diversos níveis de cuidados e estruturas de saúde envolvidas.

Para um médico, quais são os principais desafios em tratar um paciente com Duchenne? (o psicológico, no que toca a lidar com crianças será certamente um grande desafio. Caso queira pegar por aí).

Como a doença causa um envolvimento de múltiplas componentes da saúde física e psicológica, naturalmente um dos maiores desafios de cada médico envolvido é conseguir ver o doente como um todo e não olhar apenas para a área da sua especialidade. Neste aspeto, os neuropediatras e pediatras são frequentemente os médicos que se encontram mais no centro dos processos assistenciais como gestores de caso destes pacientes e, assim, têm que estar preparados para abordar as múltiplas dimensões da doença e lidar não só com o doente como com a família. Sem dúvida que o desafio de lidar com uma criança ou jovem com uma doença crónica, progressiva e incurável, bem como com as suas famílias, faz com que a abordagem dos aspetos psicológicos seja uma necessidade constante e frequentemente uma das maiores dificuldades.

Qual é a esperança média de vida para um paciente com Duchenne?

Até há relativamente poucos anos a maioria dos pacientes com Duchenne não sobrevivia muito para além dos 18 a 20 anos. No entanto, com o desenvolvimento e disponibilidade crescente dos cuidados e apoios a nível respiratório e cardíaco começa a ser frequente ultrapassar os 30 anos de idade, com alguns pacientes a atingir os 40 e mesmo 50 anos. A investigação em termos de tecnologias e medidas farmacológicas, que se mantém de forma contínua, poderá fazer este panorama vir ainda a modificar-se mais no futuro.

Entrevista de João Daniel Ruas Marques

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