Leucemia Mieloide Aguda: novos alvos moleculares e terapêuticas personalizadas

25 de Setembro 2020

Dr. Ricardo Moreira Pinto Hematologia Clínica no Centro Hospitalar S. João

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Leucemia Mieloide Aguda: novos alvos moleculares e terapêuticas personalizadas

25/09/2020 | Opinião-Saúde

A Leucemia Mieloide Aguda (LMA) é um cancro hematológico relativamente raro, uma vez que representa <1% de todos os tipos de cancro. Pode desenvolver-se em pessoas de qualquer idade, no entanto é mais comum em pessoas com 60 anos ou mais. A incidência de LMA na Europa é cerca de 3-4 casos por cada 100.000 habitantes considerando todas as idades, mas como a presença de casos de LMA aumenta exponencialmente com a idade, a incidência a partir dos 60 anos é cerca 30-40 casos por 100.000 habitantes, e ainda é superior acima dos 80 anos.

As células sanguíneas são produzidas na medula óssea. Este é um material esponjoso encontrado dentro dos nossos ossos. Cada célula do sangue cresce a partir de uma célula-mãe (progenitor hematopoiético) que se encontra na medula óssea. Normalmente, estas células-mãe formam um estadio inicial de uma célula sanguínea, denominado blasto, que posteriormente se transforma nos diferentes tipos de células sanguíneas saudáveis, num processo que se denomina maturação celular.

Existem dois grandes tipos de células progenitoras hematopoiéticas:

  1. a) Linfoides – formam um tipo de glóbulo branco chamado linfócitos
  2. b) Mieloides – produzem glóbulos vermelhos, plaquetas e todos os outros tipos de glóbulos brancos

O diagnóstico de Leucemia Aguda faz-se quando se encontram 20% ou mais blastos na medula óssea e/ou no sangue periférico, através da realização de um aspirado sanguíneo ao interior da medula óssea (mielograma) ou através de análises sanguíneas. O número total de blastos em condições normais na medula óssea é inferior a 5% e habitualmente não se encontram blastos em circulação no sangue periférico. A presença de determinadas características fenotípicas quando se observam os blastos faz com que se possa atribuir a “filiação” mieloide ou linfoide e é o que determina o diagnóstico de Leucemia Mieloide versus Linfoide.

O aparecimento de LMA deve-se a alterações genéticas (mutações, translocações cromóssomicas ou perda de material genético) que regulam o desenvolvimento e a proliferação dos blastos, o que faz com que estas células se multipliquem rapidamente e que não atinjam a respetiva maturação. Assim os blastos, células indiferenciadas e sem capacidade funcional ao nível do sangue, acabam por se acumular e ocupar a medula óssea, impedindo a produção de células normais (glóbulos vermelhos, brancos e plaquetas), o que, por sua vez, vai originar uma situação de falência medular. Esta situação de falência traduz-se, principalmente, em cansaço (por anemia) e por maior risco de desenvolver infeções e hemorragias (dada a ausência de glóbulos brancos e plaquetas, respetivamente).

O tratamento geralmente começa o mais rápido possível após o diagnóstico e consiste, na maioria das pessoas com bom estado físico, na administração de quimioterapia citotóxica intensiva (geralmente durante 7 dias seguidos), com o objetivo de eliminar as células leucémicas o quanto antes e restaurar o normal funcionamento da medula óssea, que habitualmente sucede em 3 a 5 semanas após a administração da quimioterapia. Este tipo de tratamento denomina-se de “Indução”, tem como objetivo alcançar a remissão completa (<5% de blastos na medula óssea) e é atingido na grande maioria das pessoas que é submetido a este procedimento.  Contudo, frequentemente um número muito pequeno de células leucémicas é ainda observado após a quimioterapia. Isso é denominado de doença residual mensurável (DRM) e pode condicionar o risco de recaída, bem como o tipo de tratamentos subsequentes.

A recaída de LMA é um desafio pois as armas terapêuticas após o surgimento de recaída são escassas e o prognóstico é habitualmente desfavorável. Nos últimos 3-4 anos tem-se vindo a assistir ao aparecimento de várias moléculas, com alvos terapêuticos moleculares bem definidos, e que abrem a porta a novos tipos de tratamento.  

A DRM ao constituir um reservatório de doença pequeno seria idealmente um alvo terapêutico com medidas especificamente dirigidas às células leucémicas, reduzindo assim o potencial de recidiva. Também muitas vezes as terapias dirigidas à DRM são muito eficazes para aprofundar a boa resposta inicialmente obtida, e até mesmo em contexto de transplante de medula, para potenciar o efeito anti-leucémico do enxerto, que habitualmente só atinge a plenitude ao fim de alguns meses.

Nos últimos anos, tem-se vindo a identificar várias moléculas com potencial terapêutico ao nível de 4 grandes grupos alvo: na inibição de oncogenes envolvidos na patogénese de LAM (“driver mutations”), reprogramação epigenética, na diminuição da resistência à apoptose e nas terapias imunes. Ao nível da inibição de oncogenes, os inibidores da tirosina cinase FLT3, como a Midostaurina e o Gilteritinib, demonstraram um aumento da sobrevivência global em combinação a quimioterapia intensiva no ou isoladamente em caso de recidiva. Embora apenas em monoterapia, os inibidores de IDH1 e de IDH2 também têm demonstrado eficácia terapêutica e a combinação destes inibidores com a quimioterapia convencional parece ser bem tolerada como observado em resultados preliminares de ensaios de fase 1 e 2. No que diz respeito à diminuição da resistência à apoptose, a sobre-expressão da proteína anti-apoptótica bcl2 está presente em cerca de 90% de todas as LAM. O Venetoclax é um agente mimético da proteína BH3 que se liga seletivamente à proteína bcl2, tornando assim as células leucémicas mais sensíveis à apoptose. Em monoterapia este agente é eficaz mas as respostas são pouco sustentadas à custa do desenvolvimento fácil de mecanismos de resistência. No entanto, em combinação com outros fármacos, como quimioterapia ou agentes hipometilantes, o Venetoclax induz respostas mais profundas com eventual diminuição da DRM, sem aparente indução de resistência, e é um fármaco oral muito bem tolerado. Por fim, a utilização do anticorpo monoclonal anti-CD33, Gemtuzumab Ozogamicin, em conjunto com quimioterapia, demonstrou eficácia num subgrupo importante de doentes de melhor prognóstico (com alterações citogenéticas que conferem prognóstico favorável), ao aprofundar a resposta à quimioterapia convencional (reduzindo a DRM), o que consequentemente levou a uma diminuição do risco de recaída, sendo um bom exemplo da possibilidade de utilização de terapias imunes neste contexto.

O tratamento de indução com quimioterapia intensiva foi desenvolvido há mais de 30 anos e aprimorado nos anos 90. Durante décadas os únicos desenvolvimentos na área terapêutica da LAM foram a otimização das condições de suporte e a realização de mais transplantes de medula óssea (mais dadores disponíveis, doentes mais velhos, fontes da dador alternativas, etc.). Afortunadamente nos últimos anos, o paradigma do tratamento da LAM está a mudar, prevê-se que os tratamentos possam vir a ser menos intensos e mais prolongados ao longo do tempo. Isto deve-se à melhor perceção dos mecanismos e dinâmicas moleculares na LAM e à identificação de alvos terapêuticos moleculares bem definidos como os citados anteriormente, o que pode tornar o tratamento mais eficaz e melhor tolerado, devido ao menor número de efeitos colaterais destes fármacos em comparação com os provocados pela quimioterapia clássica. Em suma, prevê-se que a muito curto prazo os tratamentos em LAM sejam cada vez mais individualizados para cada doente, o que vai ao encontro do objetivo da medicina personalizada do séc. XXI, desejável principalmente nas áreas de Hemato-Oncologia.

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Sérgio Bruno dos Santos Sousa
Mestre em Saúde Pública
Enfermeiro Especialista de Enfermagem Comunitária e de Saúde Pública na ULSM
Gestor Local do Programa de Saúde Escolar na ULSM

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