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Algumas divagações, um tanto lúdicas, sobre “Verdades Alternativas” e outras deletérias elasticidades epistemológicas extremas
“… o nosso porta-voz, Sean Spicer, forneceu factos alternativos.” (*)
Kellyanne Conway – Acessora de D. Trump
- Ouvi e … pasmai!
“Nada é mais fácil do que se iludir, pois todo o homem acredita que aquilo que deseja seja também verdadeiro.”
Demóstenes
Assisti no youtube à, chamemos-lhe assim, exposição dos “Médicos pela verdade” arrasando o status quo científico e político. Fiquei com a sensação de que se eu estivesse na audiência assistindo a uma palestra de “astrónomos pela verdade”, até seriam capazes de me convencer que afinal o modelo heliocêntrico é uma fraude!
O nível “científico” da conferência foi lastimoso, mas é natural que uma audiência leiga e desejosa de ouvir um discurso fortemente contrário a todas as ortodoxias “engolisse” a sequência de incongruências e inverdades que ali se emitiram a vertiginosa cadência. Interpares, o êxito seria bem menos plausível.
Dias depois Joana Amaral Dias, opinion macker da nossa praça, defendia o modelo sueco no combate à pandemia em curso. Confrontada sobre os números concretos e pouco abonatórios (até ao momento) registados naquele país escandinavo, a boa senhora esquivou-se a comentá-los e contrapôs uma censura ao modo único de pensar e riscos inerentes, seguida de enaltecimento e benefícios do “pensar fora da caixa”.
- Escarafunchando na História
“(…) exigindo-lhe que aceitasse o que devia ser e não aquilo que de facto era (…)”
Abdul Azzam in ‘O outro exílio’
“E vós vindes falar-me de interpolações. E vós vindes erguer contra mim a vossa miserável lógica humana, quando eu sou o que está além, quando é dela que vos liberto!”
Antoine de Saint-Exupéry
Simplificando (mesmo correndo o risco de exagerar) poderemos dizer que o pano de fundo História da Ciência (imbrincada na própria Historia da Humanidade), mais não é que o digladiar entre dois paradigmas epistemológicos mutuamente exclusivos: o racionalismo helénico e o conceito da verdade revelada, de origem judaico-cristão. Como é sabido, acompanhando a lenta derrocada do Império Romano, o livre pensamento helénico foi progressivamente remetido para o enquistamento, empurrado pelo triunfo do pensamento único cristão.
Este modelo vigorou durante a Idade Média europeia e extravasou o domínio da religião para se impor em todos as vertentes da sociedade, nomeadamente na ciência. A realidade passou a ser não o que a curiosidade e a razão sugeriam, mas sim o que o dogma impunha, sem admitir dúvida ou obrigação de demonstrar validação. É hoje pacífico para muita gente, nomeadamente muitíssimos crentes, que crença religiosa e conhecimento científico não são de modo algum antagónicos. O problema coloca-se quando a teologia invade, neoplasicamente, a epistemologia; quando o proselitismo inquina todo o modo de pensar e se esforça por controlá-lo.
Contudo, o confronto entre a razão e o argumento de autoridade manteve-se, sorrateiro, e, curiosamente, é no seio da própria igreja que alguns clérigos intelectuais ressuscitam a pouco e pouco a postura epistemológica do helenismo e abrem fissuras no corpus ideológico do Vaticano, mau grado a sua firme crença em Deus. Diga-se, en passant, que não é a religião (ou religiões) a única beneficiária do paradigma da verdade revelada: por definição, as doutrinas políticas autoritárias precisam dela como pão para a boca.
Chegamos assim a Copérnico (que também era médico e licenciado em teologia) e à sua teoria revolucionária do heliocentrismo, para assistirmos à dupla machadada que feriu, não só o modelo cosmológico ptolemaico, mas também a ditadura científica imposta pelo cristianismo. Ora, os príncipes da Igreja eram tudo menos incultos nessa época e não podiam ignorar a coerência da teoria heliocêntrica. Por isso, inicialmente a Igreja aceitou o modelo coperniano, enquanto especulação intelectual pura, embora contrário ao que diziam estar escrito na Bíblia! Incentivar o trabalho intelectual de Copérnio, ao mesmo tempo que se mantem de pedra e cal o dogma ptolemaico, era admitir implicitamente a verdade de duas teorias incompatíveis. Como sair airosamente desta contradição? Será que esta diplopia epistemológica, seguramente inconsciente, não sugere a celebre doutrina das “verdades alternativas”, desenvolvida pela entourage de Donald Trump? Não estaria o Vaticano a admitir igualmente verdadeiros dois factos totalmente incompatíveis: ou bem que a Terra está no centro ou é o Sol, ambos é que não! Ou seja, temos implícito o famigerado conceito de “verdades alternativas” em versão quatroccento?
A noção de verdade alternativa, ou para usar as exatas palavras de Kellyanne Conway em 2017 – alternativ facts – é totalmente divergente da noção de opiniões ou teorias distintas sobre um mesmo facto. Também não estamos a falar de perspetivas diversas (científica, cultural, filosófica, por exemplo) com que cada uma aborda um qualquer facto. Tão pouco tem a ver com schrodiana incerteza reinante no mundo quântico, que só não é angustiante para os iniciados. Nada disso! Verdade alternativa significa, por exemplo, que quinze pode ser igual a vinte. Se forem inequivocamente contabilizados quinze elementos, num dado local num momento preciso, temos um facto indesmentível. Mas se alguém “ungido”, ou alguém com autoridade para falar em seu nome, pronunciar que afinal são vinte, então também é um facto indesmentível que são vinte. Ambas são verdade e não mutuamente exclusivas: a isto se chamam “verdades alternativas”! Será talvez a doutrina da coexistência pacífica de dois sistemas ideológicos contrários, prévia à queda da URSS, transposta para a teoria do conhecimento: a coexistência pacifica entre as teorias geradas pelo método científico e as “verdades” reveladas pelos demiurgos.
Voltemos atrás, a Copérnico e ao curioso ambiente fim de época (medieval) e pré-trentino, que tolerava a esquizofrénica aceitação da dualidade da realidade: a empiricamente verificável e a revelada pelas escrituras. No fundo, nesse psicadelismo epistemológico havia algo de simpático e progressista: era a tolerância, ferida de inconsistência, mas que abria portas à mudança no bom sentido. Todavia, o movimento reacionário que culminaria no Concílio de Trento pôs um ponto final nestes devaneios e restaurou a coerência da lógica aristotélica ao impor a unicidade da verdade dos factos. Só com um pequeno senão: declarou como verdade o que não era verdade, isto é, reimpôs com a autoridade da verdade revelada o geocentrismo, que na altura já não tinha ponta por onde se lhe pegasse. Foi o restabelecer da falsa ciência.
Neste novo contexto do retrocesso epistemológico o “De revolutionibus orbium ceolestium” foi proibido, Galileu condenado e Giordano Bruno queimado.
Contudo, ao contrário da incongruência da Igreja no final da primeira metade do século XV, a atual doutrina das verdades alternativas não constitui um progresso. Pelo contrário, é de temer que seja um preâmbulo do retorno da autoridade revelada com fonte da interpretação do real, em detrimento do paradigma do livre pensamento helénico. Perante a realidade de factos irrefutáveis, mas que lhe são desfavoráveis, o trumpismo inova com o conceito da existência verdades alternativas, para poder cunhar de legitimas as suas inverdades, tal qual as verdades que lhe sejam opostas e, contudo, de veracidade confirmada de forma incontestável.
Esta é a estratégia possível do pretendente a ditador que está à frente duma nação onde, apesar de tudo, o conhecimento baseado na ortodoxia do método científico e a democracia (por enquanto) ainda detém um poder e prestígio, que três anos de consulado republicano não conseguiram destruir, apenas erodir. Por isso, tem de se socorrer desta bizarria das “verdades alternativas”, para fazer prevalecer a sua longa série de mentiras como verdade … alternativa à verdade científica estabelecida.
Esta é uma manobra desnecessária a Putin ou outros ditadores que filtram politicamente o que é verdade científica. Por exemplo: enquanto nos EUA o presidente enfrenta uma oposição cerrada por parte da comunidade científica e da indústria farmacêutica no tocante ao timming da aprovação vacina contra o vírus da Covid, Putin, ressuscitando o lyssenkismo estalinista, já resolveu o assunto de forma (permitam-me o sarcasmo) inovadora, heterodoxa, “fora da caixa” e contrária ao “pensamento único” do establishment científico. Decretou que a vacina russa é eficaz e segura. Já está noutro campeonato, já impos o obscurantismo, parceiro imprescindível da distopia política, que se espalha por esse planeta fora.
Resumindo: a Igreja no século XV, ao demonstrar simpatia pelo pensamento disruptivo de Copérnico, enquanto continuavam a proclamar como verdadeiros os próprios dogmas “científicos”, terá inovado e criado o protótipo da teoria das realidades alterativas, enunciada em todo o seu esplendor pela Sra. Kellyanne Conway, neste conturbado início do século XXI. Os papas Clemente VII e Paulo III, fãs de Nicolau Copérnico (**), não se terão dado conta do paradoxo que geraram e que abriam caminho para a transição de paradigmas, do da verdade revelada para o do livre pensamento helénico. Era uma tontice epistemológica, mas podia ter antecedido a alvorada do Iluminismo.
Em contrapartida, hoje, o que poderíamos apelidar como teoria Spier-Conway é o prelúdio do obscurantismo e caminha exatamente em sentido oposto. Não esqueçamos que a erosão constante que o trumpismo exerce no establishment científico tem, junto dos republicanos, uma aceitação crescente, pressagiando a restauração da unicidade da verdade dos factos, mas em direção errada, em torno da consagração das falsas ciências estribadas na autoridade da mitomania trumpiana. As convenções do Partido Republicano parecem um dejá vue do Concílio de Trento.
- Avaliando, fora da caixa, o conceito de “pensar fora da caixa”
“O aspeto mais triste da vida atual é que a ciência ganha em conhecimento mais rapidamente que a sociedade em sabedoria.”
Isaac Azimov
Mas deixemos o aquilatar do interesse destes devaneios ensaísticos sobre a génese e potenciais evoluções de teoria das “verdades alternativas” para os pensadores e historiadores a sério para regressarmos a um tema mais pragmático e ao alcance das competências do simples clínico: sondar os limites da validade da heterodoxia.
A teoria Spier-Conway arrasa “As Categorias” de Aristóteles e tudo o que se dissertou sobre a lógica deste então. Configura uma inovação epistemológica, mas que redunda, in extremis, numa disrupção ontológica caótica. Contudo, parece indiscutível que a teoria da verdade alternativa é um magnifico exemplo de … pensar “fora da caixa”! Mas é um “pensar fora da caixa” levado a um paroxismo esquizofrénico. É mister, portanto, que olhemos com uma atenção mais crítica para este gosto iconoclasta dos adversários do establishment, seja ele político, social, estético ou científico.
Claro que o ceticismo, a inovação e o pensar fora da caixa foram o húmus do pensamento científico e que os exemplos de avanços gigantescos que a heterodoxia intelectual permitiu são inúmeros. Mas nem tudo o que vem à rede é peixe. Para a história ficaram os sucessos, raramente os insucessos. Sem que os insucessos devam desencorajar a busca por novas formas de abordar as coisas, há que não as endeusar. O pensar fora da caixa é uma ferramenta para e não um fim em si mesmo. A heterodoxia não proclama verdades só porque é heterodoxia, ou arrisca-se a cair na fossa comum das “verdades alternativas” e estultícias semelhantes. É que ele há por aí ortodoxias que são difíceis de contestar, sob o risco de resvalar para o ridículo, ou pelo menos, para o desperdício de tempo e energia.
Recordemos Galeno e a sua teoria anatómico-fisiológica do sistema urinário, cuja veracidade tem sido confirmada pelo sedimentar de conhecimento ao longo de vinte séculos. Quem, inspirado pelo indómito propósito de pensar “fora da caixa”, pretende pôr em causa tão empedernida verdade? E quanto ao vetusto teorema dito de Pitágoras, já confirmado por mais de duas centenas de demonstrações diferentes? Haverá quem queira desafiar ortodoxia e negar-lhe a validade? Vale a pena notar que nem tudo o que Galeno disse é verdade e a sua teoria da circulação sanguínea foi destronadas por um Harvey, pensador fora da caixa, é certo, mas sensato o suficiente para não mexer na teoria galénica no que ao aparelho urinário dizia respeito.
Como ficou dito, pensar de forma desalinhada em relação ao mainstream e a irreverência podem ser salutares e está historicamente comprovada a sua utilidade. Já a sua consagração como recursos de absoluta fecundidade epistemológica e garantia de segurança quanto à fiabilidade na busca da verdade, não passam de perigosa tolice, um tanto beatífica, fruto de uma visão através das lentes psicadélicas duma certa intelectualidade urbana pós-moderna. A irreverência intelectual é uma ferramenta não um objeto de culto. A ideia inovadora deverá ser fundamentada, quer dizer, valer por si mesma, e não ser apenas pelo rótulo de caução de sã iconoclastia, qual certificado de garantia para atingir a verdade.
O pensar fora da caixa, para ser frutífero há que respeitar a fundamentação e coerência das suas propostas. Digamos que o processo tem dois tempos. Ao primeiro, sob a forma de brainstorm, compete arrebanhar todas as hipóteses em modo onírico, isto é, sem freio nem filtro, mesmo as mais estapafúrdias. No segundo tempo, há que separar o trigo do joio, quer dizer, avaliar a coerência das hipóteses nascidas da tempestade neuronal, testá-las, compará-las com a validade das teorias do status quo e, por fim, trazê-las para a discussão interpares, com a abertura de espírito suficiente para aceitar as consequências do debate. A adoção duma postura expressionista que se quede pelo primeiro tempo é mãe das falsas ciências (vidé o exemplo das terapias alternativas que por aí vicejam), de delírios epistemológicas do tipo “verdades alternativas”, ou de vãs cavalgadas contra moinhos de vento. É própria dos que hoje confundem estética e política com ciência, tal como o cristianismo confundia fé com ciência.
- Os Iluminados
“Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade.”
Clarice Lispector
De regresso ao início deste texto, foquemo-nos das intervenções da vistosa comentadora e dos esforçados colegas “pela verdade”, imbuídos do louvável desiderato de derrubar os anquilosados mitos do establishment sobre a pandemia.
Receio, em relação a estes últimos, que estejamos a resvalar para a defesa duma “verdade alternativa”. Muito embora exista controvérsia, legitimada pela incerteza sobre o que se sabe e faz no combate à pandemia, é estranho que uns médicos de família em companhia duma internista e duma cardiologista, sob a liderança dum neurorradiologista, tenham vindo passar atestados de incompetência ou, mais grave, de desonestidade a toda a plêiade de especialistas em saúde pública, virologistas, pneumologistas, intensivistas, etc., que lidam diretamente com a doença no dia a dia.
Quanto a Joana Amaral Dias conviria evitar a leviandade de tecer opiniões sobre assuntos para o quais não se preparou. Para defender a opção sueca é preciso mais que rotulá-la como “fruto do pensamento fora da caixa”, o que, francamente, tresanda a argumento de autoridade. Como a comentadora não se mostrou capaz de defender a sua dama, recordamos que o racional da opção sueca se baseia na aposta em atingir tão rápido quanto possível a imunidade de grupo para travar a transmissão da doença. Para tal, deverão aligeirar ao máximo medidas limitadoras do contágio. É pacífico que esta via pareça menos deletéria para a economia, sendo, porém, inquestionável que a atividade económica não fica incólume durante uma tempestade epidémica como a que estamos vivendo. Porém, há um preço a pagar, cuja fatura os defensores da via sueca rementem para as linhas escritas em letra miudinha ou omitem simplesmente. E o preço são vidas, muitas vidas, altos níveis de morbilidade e o consequente colapso dos serviços de saúde, com o resultante incremento de perda de vidas por causas não Covid. Desvalorizá-lo é negacionismo.
Mas pensando bem, a gripe americana, injustamente crismada de espanhola, entre 1917 e1920 matou mais gente que a 1ª Grande Guerra, mas não pôs fim à civilização tal como a conhecemos hoje. A própria peste negra, que ceifou quase metade da população da Europa nos meados do século XIV, não impediu que os europeus, menos de um século depois, estivessem já empenhados na invasão do resto mundo, com o êxito que a História reporta. Lamentável é que os detratores das politicas de contenção do contágio, não venham a público dizê-lo com clareza e exortar os cidadãos a dar o corpo às balas, que é como quem diz: aos vírus.
Podemos perfeitamente adotar a via sueca, ou as preconizadas por Bolsonaro ou Trump, assim estejamos elucidados e preparados para suportar os custos e a incerteza que implicam.
(*) https://www.youtube.com/watch?v=VSrEEDQgFc8
(**) Diaz, J.L. “Copérnico. O heliocentrismo” 2012
Excelente artigo a desmontar o ruído na luta pela pandemia apenas para ser diferente e abrir guerras que não são em busca da vitória contra a doença mas sim políticas.