As taxas de mortalidade são mais elevadas em doentes com HIV que estão em risco nutricional: excesso de peso/obesidade ou desnutrição, alerta a nutricionista Ana Patrícia Caeiro, da Associação Positivo.
HealthNews – De que forma as perturbações nutricionais condicionam a resposta à terapêutica, comprometem a qualidade de vida e aceleram a gravidade da doença nas pessoas com VIH/SIDA?
Ana Patrícia Caeiro – A intervenção nutricional sempre assumiu uma posição importante nos cuidados de saúde dos indivíduos com VIH, tendo sido referenciada por várias organizações (American Dietetic Association ou a Organização Mundial da Saúde, por exemplo) como algo que deve ser tido em conta no plano de tratamento neste grupo de indivíduos.
Um estado nutricional inadequado pode interferir na função imune e na resposta à terapêutica farmacológica, sabendo-se que as taxas de mortalidade são mais elevadas em grupos de indivíduos que estão em risco nutricional (excesso de peso/obesidade ou desnutrição). Para além disso, a presença da infeção e os antirretrovirais promovem alterações metabólicas e na função imune que, consequentemente, podem afetar as necessidades em macronutrientes e micronutrientes.
Por estas razões, torna-se importante fazer uma análise da situação clínica, bioquímica e alimentar bastante detalhada, de forma a elaborar um plano alimentar adequado às necessidades de cada indivíduo, com o objetivo de potenciar a função imunitária e a resposta à TAR (terapêutica antirretroviral), bem como a prevenção da ocorrência de distúrbios metabólicos.
HN – Quais são as recomendações nutricionais para os doentes adultos, sem perder de vista outras patologias concomitantes e fatores de risco como a hipertensão e dislipidémia?
APC – As guidelines europeias recomendam um consumo elevado de frutas, cereais integrais e leguminosas, privilegiar o consumo de peixe e carnes brancas em vez de carnes vermelhas, a redução da ingestão de gorduras saturadas, açucares es al. Mas são recomendações gerais que o nutricionista deve colocar em prática, adaptando-se ao indivíduo e à sua situação clínica. São muitos os estudos que comprovam que alterações na alimentação em pessoas que vivem com VIH (PVVIH) têm um papel importante na manutenção de um peso adequado e melhorias no perfil metabólico.
Para além disso, alguma evidência mostra que as PVVIH apresentam uma adesão crescente para o padrão alimentar ocidental, no qual existe uma presença muito fincada de gorduras saturadas, colesterol e açúcar, mas que na realidade é muito pobre do ponto de vista nutricional. Esta tendência de consumo pode estar associada a situações de insegurança alimentar que são prevalentes neste grupo de indivíduos, sabendo-se também que um dos fatores que intervém na escolha entre a dieta ocidental e a dieta mediterrânica (uma dieta com inúmeros benefícios associados e com uma adesão cada vez menor) é o fator económico. Este é também um desafio a ter em conta, de forma a inverter esta tendência de consumo e privilegiar uma alimentação mais saudável mas acessível.
HN – Existem estudos sobre os benefícios da dieta mediterrânica também nos doentes com VIH/SIDA?
APC – A verdade é que as recomendações nutricionais europeias para as PVVIH são muito semelhantes ao padrão da dieta mediterrânica. A dieta mediterrânica está associada a um elevado consumo de produtos de origem vegetal (leguminosas, cereais integrais, frutos oleaginosos, fruta e azeite) e um consumo mais regrado de produtos de origem animal (carnes, peixe, lacticínios, gorduras de origem animal). Os seus benefícios estão bem documentados na evidência científica para a população em geral e demonstram que existe um papel protetor em relação à doença cardiovascular e em doenças metabólicas.
A maior parte da evidência existente em PVVIH mostra que existe uma probabilidade inferior de desenvolver lipodistrofia e uma melhoria dos fatores de risco cardiovascular. Para além disso, parece que indivíduos que se encontrem num risco cardiovascular mais elevado e com comorbilidades associadas, têm uma maior adesão a este padrão alimentar, o que pressupõe que existe uma perceção de saúde para a mudança de comportamento. Contudo, a evidência relativa ao papel da dieta mediterrânica neste grupo de indivíduos ainda é escassa e, por esta razão, serão necessários mais estudos que possam avaliar estas populações de forma longitudinal e perceber se existe efetivamente uma redução do risco cardiovascular e dos fatores de risco metabólicos.
HN – Na sua opinião, o acompanhamento nutricional deve iniciar-se logo após o diagnóstico, ou seja, deve fazer parte do plano de cuidados do doente?
APC – A infeção por VIH e o estado nutricional estão diretamente interligados, daí ser crucial existir uma avaliação numa fase precoce, de forma a identificar indivíduos em risco nutricional (por excesso de peso/obesidade ou desnutrição).
Sendo a alimentação um dos fatores de risco modificável e que tem impacto nas comorbilidades já referidas, torna-se essencial que este acompanhamento faça parte do seu plano de cuidados. Quanto mais precoce for a atuação, melhores serão os outcomes de saúde, melhorando consideravelmente a qualidade de vida do paciente. É óbvio que os resultados estão dependentes de vários fatores como, por exemplo, a adesão ao plano ou as condições socioeconómicas, daí ser importante um acompanhamento nutricional próximo.
HN – O uso de TAR mudou o paradigma da infeção pelo VIH. Na sua opinião, os desafios nutricionais também mudaram, com as grandes preocupações a centrarem-se agora no aumento de peso e obesidade, dislipidémia e lipodistrofia?
APC – Há duas fases temporais distintas na infeção por VIH: o pré e pós aparecimento da TAR. Na fase pré-TAR, a perda de peso era algo vulgar e fazia parte do critério de diagnóstico da infeção por VIH. Quando a TAR surgiu, verificou-se que existia uma associação com o risco de desenvolver obesidade e excesso de peso. Para além disso, verificou-se um aumento de outras disfunções metabólicas, nomeadamente o aparecimento de lipodistrofia, dislipidémia, síndrome metabólica, diabetes e doença cardiovascular.
Todas as comorbilidades referidas contribuem para um aumento do risco cardiovascular neste grupo de indivíduos que, segundo a evidência científica, é um risco superior ao demonstrado pela população em geral. Importa referir que este aumento do risco cardiovascular não está apenas associado à terapêutica farmacológica mas também à própria infeção e a um estilo de vida pouco saudável, nomeadamente sedentarismo e a adesão crescente a um padrão alimentar ocidental.
Portanto, a TAR mudou o paradigma da doença: passámos de uma doença potencialmente fatal para uma doença crónica mas com desafios metabólicos muito prevalentes. Claro que o aparecimento da TAR foi extremamente importante para o aumento da esperança média de vida, associada a uma redução ou supressão da carga viral. Mas todas as disfunções metabólicas inerentes acabam por ser um desafio para as equipas de saúde, nomeadamente para os nutricionistas, sendo crucial uma atuação individualizada e com base na evidência científica, de forma a melhorar a qualidade de vida dos doentes.
HN – Muitos doentes não têm capacidade económica para fazerem uma alimentação saudável. De que modo o desenvolvimento de projetos como o NutriOn, pela Associação Positivo, tenta responder a essa enorme dificuldade?
APC – O Projeto NutriOn, tal como outros já desenvolvidos pela Positivo, pretende criar um acompanhamento nutricional próximo e um plano alimentar adaptado às suas necessidades e possibilidades socioeconómicas. Um dos destaques deste projeto passa pela possibilidade de consulta em formato online, que nos permitirá chegar a mais PVVIH a nível nacional, nomeadamente a zonas mais remotas, onde o acesso a este tipo de consulta pode ser mais complexo.
Outro ponto-chave do NutriOn será a entrega de cabazes alimentares com fruta e legumes produzidos a nível nacional, que são dois grupos alimentares extremamente importantes do ponto de vista nutricional mas que vejo, em consulta, que costumam ser dos mais desvalorizados. Em primeiro lugar, como a iliteracia alimentar e de saúde costuma ser algo prevalente nas PVVIH, pode existir algum desconhecimento de determinadas frutas e legumes existentes a nível nacional e dos seus benefícios. Em segundo lugar, nota-se alguma dificuldade em saber como confecionar alguns legumes e em que tipo de confeções podem ser aplicados. Para além disso, os doentes podem também ter dificuldades em aceder a estes dois grupos alimentares por questões socioeconómicas.
Por fim, pretende-se também capacitar os indivíduos que frequentem o projeto com sessões de educação alimentar, para que exista um empowerment da sua literacia alimentar e de saúde. Ao potenciarmos este tipo de conhecimento, iremos facilitar todo o processo de aquisição de hábitos alimentares mais saudáveis, bem como fomentar a utilização dos produtos adquiridos através do cabaz de hortofrutícolas, diminuindo as barreiras existentes a nível da sua confeção e utilização.
Algo que procuro sempre incutir nas pessoas que sigo em consulta, na Positivo, é que a alimentação saudável não precisa de ser necessariamente mais cara. Claro que há produtos alimentares que são mais caros (por exemplo, hortofrutícolas ou peixe) mas tento sempre mostrar que existem alternativas igualmente saudáveis e de boa qualidade nutricional que podem ser facilmente introduzidas na sua alimentação.
Entrevista de Adelaide Oliveira
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