José Vera, presidente do Núcleo de Estudos da Doença VIH da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), defende ainda a criação de uma Via Verde para a referenciação destes doentes às consultas hospitalares.
HealthNews (HN) – A prevalência do VIH em Portugal diminuiu mas a doença ainda não está controlada. Por outro lado, mais de metade dos doentes apresenta-se tardiamente para diagnóstico. Quais são as implicações em termos humanos e económicos?
José Vera (JV) – Ao longo dos últimos anos temos visto um decréscimo do número de novas infeções mas, de qualquer maneira, continuamos a ser dos países da Europa onde a incidência é maior. Embora não estejamos numa situação tão catastrófica como há algumas dezenas de anos atrás, neste momento ainda mantemos uma situação desconfortável. Além disso, os doentes são diagnosticados muito tardiamente no decorrer da infeção. Mais de 50% têm um diagnóstico tardio. Isso implica uma mortalidade francamente superior ou a possibilidade de doenças graves com incapacidade permanente.
Os custos do tratamento destes doentes são também muito superiores, em comparação com aqueles que são diagnosticados precocemente.
Voltamos à questão de sempre: não valeria a pena, tanto do ponto de vista humano como do ponto de vista financeiro, investir mais no diagnóstico e no tratamento precoce?
HN – Esse investimento não está a ser feito?
JV – Deveríamos levar a cabo algumas mudanças. Por um lado, fazer algo de novo e, por outro, reforçar o que já está a ser feito e tem resultados positivos.
São exemplos a necessidade de reforçar a atuação das organizações de base comunitária que, no terreno, não conseguem alargar a sua atividade por falta de recursos, ou de promover o rastreio, pelo menos uma vez na vida, se não mais, a toda a população, onde os Cuidados de Saúde Primários teriam um papel fundamental. Contudo, o rastreio e diagnóstico do VIH – e de outras infeções virais, como a hepatite C – não fazem parte da contratualização da atividade da Medicina Geral e Familiar (MGF).
É desesperante vermos chegar ao Serviço de Urgência ou ao Serviço de Internamento pessoas que não só tiveram contacto com a MGF mas também com o Serviço de Urgência por diversas vezes, já com situações em que teria sido obrigatório ou, pelo menos, muito desejável, pedir um teste de VIH.
Repare-se que o panorama que existe ao nível da Medicina Geral e Familiar repete-se no Serviço de Urgência dos hospitais. É sabido que o pedido, por rotina, de testes de VIH nas zonas de alta prevalência da infeção, nomeadamente nos grandes centros urbanos do litoral, onde a pandemia de VIH está mais concentrada, é útil, gera diagnósticos, e todos nós ganhamos com isso. Nestes locais, deveriam existir orientações, não só da Direção-Geral da Saúde mas das próprias Administrações Regionais de Saúde, no sentido de serem tomadas medidas ativas para um maior diagnóstico do VIH.
HN – Em relação aos doentes diagnosticados e em tratamento, as novas terapêuticas aumentaram a esperança de vida mas se as copatologias não forem tratadas atempadamente, essa vantagem pode perder-se?
JV – Felizmente, neste momento os efeitos secundários das medicações que utilizamos para o tratamento do VIH são cada vez menores. Há 20 anos atrás, exigiam duas ou três tomas por dia, quando não era mais, e o número de comprimidos chegava aos 15 e aos 20. Tudo isso já passou. Hoje, a medicação está muito mais simplificada, quer na facilidade de toma, quer do ponto de vista dos efeitos adversos.
Com efeito, a situação mudou como da noite para o dia. Os efeitos adversos da medicação são muito pouco frequentes e isso facilita não só a adesão dos doentes ao tratamento mas também às consultas e à realização dos exames.
Por outro lado, a medicação é muito mais eficaz do que há muitos anos atrás. Isso faz com que as pessoas, quando entram em tratamento, consigam controlar a infeção e viver mais tempo.
Mas, mesmo controlada, a infeção por VIH continua a ser um fator de risco em termos do aparecimento de outras doenças. Encarando-a como uma doença crónica, é necessário dar uma resposta adequada e eficaz. Caso contrário, arriscamo-nos a perder o doente ou não intervir a tempo de evitar complicações que podem diminuir a sua qualidade de vida. Refiro-me, por exemplo, à hipertensão, diabetes e doenças cardíacas.
É preciso ter em atenção que grande parte dos doentes com VIH têm problemas socioeconómicos graves (emprego precário ou mesmo desemprego) e essa precariedade económica impede-os, muitas vezes, de se deslocarem da sua residência à unidade de tratamento. Não podemos, pois, sobrecarregá-los com consultas dispersas porque, se o fizermos, arriscamo-nos a perder eficácia em termos do seu tratamento.
HN – É por isso que defende a criação de unidades de tratamento de ambulatório, mais próximas e com maior facilidade de comunicação com o doente?
JV – No nosso sistema de saúde, o seguimento normal dos doentes com VIH depende do hospital. E o mesmo acontece com o tratamento de muitos outros doentes crónicos complexos e com algum grau de gravidade como, por exemplo, as pessoas com diabetes ou insuficiência cardíaca.
O problema é que a organização hospitalar está tradicionalmente baseada na tríade, já completamente ultrapassada, da consulta externa, internamento e urgência. Penso que deveríamos avançar com mais um polo de atividade na estrutura hospitalar que abrangesse o atendimento em ambulatório à doença crónica.
Durante a pandemia, todos os recursos humanos afetos à estrutura de atendimento ambulatório, nas consultas externas e mesmo nalgumas unidades que já estão mais ou menos organizadas em termos do seguimento dos doentes crónicos, foram canalizados para a resposta à Covid-19. Todos sabemos que os hospitais têm falta de pessoal quer médico, quer de enfermagem. Como o ambulatório hospitalar não tem autonomia nem um quadro próprio, é exatamente daí que são retirados os recursos humanos para cumprirem outras funções. As consequências, em termos do atendimento dos doentes crónicos, são por demais evidentes.
Na minha perspetiva, todos os hospitais deveriam ter Unidades Integradas de Ambulatório – eventualmente dependentes do Departamento de Medicina – com uma organização e autonomia suficientes para juntar as especialidades que são absolutamente fundamentais para o seguimento destes doentes crónicos, conjugando profissionais com experiência e conhecimento que possibilitasse uma reposta mais alargada aos problemas destes doentes.
HN – Na sua opinião, é necessário avançar com a criação de uma Via Verde de referenciação dos doentes com VIH?
JV – A referenciação dos doentes com VIH é ainda um processo muito burocratizado. Apesar de ter sido estabelecido que, por norma, o doente deverá ter consulta no período de uma semana após o diagnóstico, na realidade isso não acontece. Até porque alguns hospitais só recebem os doentes quando estes são referenciados pelos centros de saúde e sabemos que nem sempre é fácil conseguir uma consulta nos CSP, que registam uma falta nítida de recursos humanos.
Estamos a perder doentes pelo caminho. Com a criação de uma Via Verde e a possibilidade de o doente ter uma consulta marcada para o dia seguinte ou dois dias depois, a probabilidade do doente ficar ligado à unidade e criar uma relação de proximidade com os profissionais de saúde é muito maior, em comparação com a atual burocracia, em que muita gente se perde.
HN – Em relação ao acesso à profilaxia pré-exposição (PrEP), considera que o procedimento é também muito burocrático?
JV – Há ainda alguma burocracia associada à PrEP. Os doentes têm de ir buscar a medicação ao hospital uma vez por mês. Quase soa a castigo!
Não se percebe porque é que este programa está centralizado numa consulta hospitalar. Para sermos eficazes, é preciso descentralizar, quer para as organizações de base comunitária que possuam apoio médico, quer para a Medicina Geral e Familiar.
Inicialmente, terá feito sentido que fosse centralizado nos hospitais mas, posteriormente, deveria ter seguido uma dinâmica de descentralização. Neste momento, estamos como no início e com normas que a realidade demonstra não serem compatíveis com a retenção das pessoas no programa.
HN – O Núcleo de Estudos da Doença VIH, da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) continua a desenvolver um trabalho importante na formação dos profissionais de saúde ligados ao VIH, em todos os quadrantes. Isso é mais uma manifestação da vontade de descentralizar?
JV – Todos nós nos devemos virar para fora das nossas estruturas, proporcionando formação e informação. Considero que a ligação dos hospitais e da atividade hospitalar às unidades de saúde não hospitalares, como os centros de saúde, as organizações de base comunitária ou a Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD), deve ser reforçada. Facilita a troca de conhecimentos, agiliza procedimentos e contribui inequivocamente para melhorar a qualidade do nosso trabalho. É sobretudo importante para a redução de atitudes descriminatórias que, infelizmente, continuamos a ver diariamente nas nossas instituições.
Adelaide Oliveira
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