José Vale: na EM “tempo é cérebro”

06/07/2021
“Um dos principais fatores que atrasa o diagnóstico da Esclerose Múltipla é a demora na referenciação ao neurologista”, afirma o Dr. José Vale, diretor do Serviço de Neurologia do Hospital Beatriz Ângelo e Presidente do Colégio de Neurologia da Ordem dos Médicos. “Tal como noutras doenças neurológicas, tempo é cérebro”.

“Um dos principais fatores que atrasa o diagnóstico da Esclerose Múltipla é a demora na referenciação ao neurologista”, afirma o Dr. José Vale, diretor do Serviço de Neurologia do Hospital Beatriz Ângelo e Presidente do Colégio de Neurologia da Ordem dos Médicos. “Tal como noutras doenças neurológicas, tempo é cérebro”.

 HealthNews (HN) – A esclerose múltipla é uma doença multifatorial que ainda não tem cura mas pode ser controlada?
Dr. José Vale (JV) – Infelizmente ainda não temos uma cura para a Esclerose Múltipla (EM). Todavia, nas últimas duas décadas registaram-se progressos notáveis no diagnóstico e no tratamento. Atualmente dispomos de fármacos muito mais efetivos no controlo do processo inflamatório que caracteriza a doença, que permitem assim evitar o aparecimento de novas lesões no sistema nervoso central e, consequentemente, reduzir a ocorrência de surtos (défices neurológicos agudos que podem ou não deixar sequelas). Acontece que na EM, para além deste componente inflamatório, existe também um componente degenerativo que se traduz em termos clínicos por um agravamento lentamente progressivo dos défices (ex. motores, cognitivos) e para o qual os recursos terapêuticos disponíveis têm um efeito pouco significativo. O controlo destas formas progressivas da doença tem vindo a ser um dos principais focos da investigação nos últimos anos e esperamos que os múltiplos ensaios clínicos em curso possam trazer bons resultados de forma a minimizar esta que é uma das principais dificuldades na evolução da EM.

HN – Quais são os fatores de risco modificáveis e genéticos que podem desencadear os sintomas de EM?
JV – As causas da EM são ainda desconhecidas. Na perspetiva atual, que é comum a outras doenças de natureza auto-imune, admite-se que a EM resulte de uma combinação desfavorável de vários fatores genéticos, epigenéticos e ambientais.

Dos fatores genéticos, os mais importantes são alguns genes que participam na resposta imune, destacando-se a presença do alelo HLA-DRB1*15:01; todos estes conferem uma maior suscetibilidade para a EM, mas não são suficientes para gerar a doença.

Os fatores ambientais (potencialmente modificáveis) incluem a infeção pelo vírus Epstein-Barr (agente da mononucleose infeciosa), hábitos tabágicos, défice de vitamina D e obesidade na adolescência.

É possível que a interação entre estes fatores ocorra na infância/adolescência, interferindo assim com o desenvolvimento do sistema imune adaptativo e, deste modo, levando ao aparecimento de auto-imunidade dirigida ao sistema nervoso central.

Com base nestes dados, torna-se claro que é difícil tomar medidas de prevenção da doença. As recomendações atuais sugerem que a prática de um estilo de vida saudável – evitando as dietas hipercalóricas, com exercício físico regular e sem tabaco – poderá reduzir a probabilidade de desenvolver EM. Em pessoas com maior risco de EM – familiares de doentes – a suplementação com vitamina D pode ser útil na prevenção da doença.

HN – Por vezes demora-se muito a chegar a um diagnóstico. Quais são as causas desse atraso?
JV – A este propósito importa salientar que não há um teste ou exame que faça o diagnóstico de EM. O diagnóstico é estabelecido com base num conjunto de critérios clínicos e neurorradiológicos/laboratoriais. Este é um ponto que levanta dificuldades a quem não estiver familiarizado com a doença.

Em Portugal, num estudo recente, verificou-se que a demora média entre os primeiros sintomas e o diagnóstico é de aproximadamente nove meses, o que não sendo um resultado brilhante, não nos envergonha nada a nível europeu.

Um dos principais fatores que atrasa o diagnóstico é a demora na referenciação ao neurologista; isto pode acontecer por dificuldade no acesso ao neurologista ou porque inicialmente foi assumido um outro diagnóstico. Após a observação pelo neurologista, o diagnóstico é estabelecido rapidamente.

Outros fatores que contribuem para o atraso no diagnóstico estão relacionados com particularidades clínicas da doença. A EM tem uma expressão muito variável e pode ser confundida com outras doenças. Os aspetos da doença que suscitam mais dificuldade no seu reconhecimento são o seu início numa idade mais avançada, presença de um défice exclusivamente motor e ter uma evolução progressiva.

HN – Quais são as consequências de um diagnóstico tardio numa doença que afeta muitas pessoas jovens?
JV – A consequência mais imediata do atraso no diagnóstico é não poderem beneficiar do tratamento específico para a doença, mantendo o risco de aparecimento de novos surtos que podem gerar sequelas (défices).

As vantagens do tratamento precoce estão hoje bem estabelecidas e essa evidência levou à evolução dos critérios de diagnóstico que permitem, na formulação atual, estabelecer o diagnóstico logo na primeira manifestação da doença.

Tal como noutras doenças neurológicas, “Tempo é cérebro”.

HN – Existem particularidades na gestão e no tratamento da EM na mulher, particularmente em idade fértil?
JV – A escolha do tratamento deve levar em conta as características e grau de atividade da doença, bem como o perfil e preferências do doente.

Atendendo a que alguns dos fármacos são potencialmente teratogénicos, este aspeto deve ser considerado nas mulheres em idade fértil e que têm o desejo de engravidar. Não há razões para desaconselhar a maternidade; o que é importante é gerir esta dificuldade, ponderando as opções terapêuticas e programando a gravidez de uma forma segura.

As recomendações sobre a EM e gravidez foram recentemente atualizadas e publicadas pelo Grupo de Estudos de EM (GEEM) na revista Ata Médica Portuguesa.

HN – De acordo com as conclusões do Think Thank “Consenso Nacional para a Esclerose Múltipla”, promovido pela Unidade de Saúde Pública da Universidade Católica Portuguesa, destaca-se a possibilidade do uso de linhas terapêuticas mais eficazes na fase inicial da doença. De que forma essa mudança pode garantir a contenção da progressão da doença?
JV – Múltiplos estudos evidenciam que a utilização dos fármacos de maior eficácia no controlo do processo inflamatório tem melhores resultados em termos de qualidade de vida e na redução da incapacidade a médio prazo. Estes dados vieram alterar o paradigma do tratamento, com um posicionamento destes fármacos ditos de ‘2ª linha’, a serem utilizados numa fase mais precoce da evolução doença. Estas mudanças levam tempo a ser implementadas na prática clínica, quer por conservadorismo dos médicos, quer por alguma resistência institucional à prescrição de fármacos mais caros.

O que se advoga no Consenso não é a generalização do uso destes fármacos, é o cumprimento das recomendações nacionais e internacionais, de forma a que todos os doentes possam ter acesso ao tratamento mais indicado e assim se otimizar o controlo da doença.

HN – Quais as consequências da pandemia de Covid-19 no tratamento e na reabilitação das pessoas com EM?
JV – Os constrangimentos gerados pela pandemia Covid-19 impuseram uma redução dramática da atividade externa dos hospitais (consulta e hospital de dia), bem como o encerramento dos serviços de reabilitação. Por outro lado, é recomendado que os doentes, no cumprimento das medidas de proteção, evitem as idas ao hospital.

Isto levou a que fossem tomadas medidas a vários níveis. O acompanhamento passou a ser feito essencialmente por tele/vídeo consulta, com atrasos naturais quando há necessidade de consultas presenciais quer de neurologia, quer de outras especialidades (ex: oftalmologia e urologia). Os protocolos para a realização de exames para monitorização da doença (ex: RM) ou do tratamento (ex: análises laboratoriais) foram adaptados de modo a exigirem menos vindas ao hospital. Quando possível, foi atenuado o peso das terapêuticas imunossupressoras, diferindo o início de tratamentos, alargando os tempos entre infusões ou reduzindo a dose de cada administração. A dispensa dos fármacos a nível hospitalar passou a ser feita cada três meses.

Todas estas medidas visam mitigar as necessidades dos doentes, mantendo-se um controlo razoável da situação. Infelizmente, os mais penalizados são os que têm formas mais avançadas da doença, que necessitam de mais cuidados e que estão há muitos meses sem fisioterapia, terapia ocupacional ou treino cognitivo, o que nestes doentes acarreta consequências graves.

HN – Que evidências existem neste momento relativamente ao risco dos doentes com EM no caso de contraírem a infeção?
JV – Os dados disponíveis mostram que ser portador de EM, só por si, não confere um risco acrescido de infeção pelo SARS-CoV-2. O facto de muitos doentes estarem sob tratamento imunossupressor levou a que se assumisse a priori que esta condição poderia levar a um maior risco de contrair a infeção e, eventualmente, ao desenvolvimento de formas mais severas da doença. Os resultados mais recentes, que compilam a informação de milhares de doentes infetados, mostram contudo que a evolução desfavorável – formas graves (com necessidade de ventilação assistida) ou morte – não está relacionada, de um modo geral, com o tipo de fármaco utilizado.

Os fatores associados a uma maior gravidade da infeção são a idade avançada, elevado grau de incapacidade, insuficiência ventilatória e presença de comorbilidades (por exemplo, hipertensão arterial e doença cardíaca).

 

 

 

1 Comment

  1. Mariléia Santos Andrade

    Sou portadora. Da EM desde 2005. Diagnóstico confirmado através de exames RM, licor da espinha entre outros com tratamento imediato após os primeiros surtos. Faço tratamento semanal de Interferon Avonex injetável uma vez por semana. Fornecido pela farmácia alto custo de SBC. Tratamento acompanhado pelo médico neuro Dro. Carlos Henrique Carneiro Hospital Brasil SA. Atualmente estou passando por uma crise, dormência lado esquerdo. Não entrou com a pulsoterapia, que faço qdo tenho surtos. Estou tomando via oral Corticoide. Por estar atualmente somente no braço esquerdo.

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