Paulo Morais sobre psoríase: “A chave para o sucesso terapêutico passa pela individualização do tratamento”

10/08/2021
Dr. Paulo Morais, Dermatologista no Hospital Trofa Saúde Alfena

A psoríase é conhecida como “a doença dos três nãos”, porque não mata, não tem cura e não contagia. “O envolvimento cutâneo é a ponta do icebergue” desta doença, que afeta mais de 250 mil portugueses e cerca de 125 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo o Dr. Paulo Morais, dermatologista no Hospital Trofa Saúde Alfena. O médico falou-nos das comorbilidades associadas à psoríase, do impacto na qualidade de vida dos doentes, que se faz sentir a nível físico, emocional, social, profissional e económico, e do tratamento, que deve ser individualizado. “É essencial considerar os diferentes domínios da doença psoriática na seleção da terapêutica, devendo o tratamento cobrir ao máximo o espectro da doença e ser direcionado tanto à inflamação cutânea como à sistémica”, explicou Paulo Morais.

HealthNews (HN)- O que é a psoríase? 

Paulo Morais (PM)- A psoríase é uma doença inflamatória crónica e sistémica, imuno-mediada, potencialmente grave e incapacitante, mas não infeciosa. Em função de seu caráter sistémico, as suas manifestações podem ir muito além das lesões cutâneas que a tornam tão evidente. Como é característico de muitas doenças crónicas, cursa com fases de agudização (surtos) e períodos de melhoria ou remissão. É conhecida como a “doença dos três nãos”: não mata, não tem cura e não contagia.

Afeta ambos os sexos de igual forma e, embora se possa manifestar em qualquer idade, a maioria dos casos ocorre entre os 15 e os 30 anos, sendo também comum entre os 50 e os 60 anos de idade. Afeta mais de 250 mil portugueses e cerca de 125 milhões de pessoas em todo o mundo.

A variante mais comum, a psoríase em placas, manifesta-se por placas eritematosas e descamativas, envolvendo preferencialmente os cotovelos, joelhos, região lombo-sagrada e couro cabeludo, associando-se frequentemente a prurido e escoriações resultantes do ato de coçar. Existem, no entanto, outras formas de psoríase: gutata ou em gotas, inversa ou flexural, pustulosa, eritrodérmica e artropática (artrite psoriática).

HN- Além dos problemas na pele, como é afetada a saúde dos doentes?

PM- O envolvimento cutâneo é a ponta do icebergue da doença psoriática. Efetivamente, a componente cutânea, o envolvimento articular, as doenças concomitantes (ou comorbilidades) e a eventual toxicidade das medicações utilizadas impactam negativamente a saúde global do doente, fazendo com que a psoríase tenha um efeito nocivo na qualidade de vida comparável ao de doenças como a diabetes, depressão, doença cardíaca isquémica e cancro. 

Este impacto na qualidade de vida faz sentir-se tanto a nível físico como emocional, social, profissional e económico. A nível físico, a doença origina sintomas como o prurido, o ardor, a sensação de desconforto, a dor na pele e nas articulações e a incapacidade funcional. A nível psicoemocional, podem ser notórios sintomas de ansiedade, raiva, frustração, baixa autoestima, inibição, constrangimento, tristeza, solidão, depressão e maior frequência de ideação suicida. A nível interpessoal, sexual e social, foca-se a estigmatização, a discriminação, o isolamento, a rejeição social, a menor tendência para procurar relacionamentos, a disfunção sexual e a diminuição da participação em atividades desportivas e sociais. A nível profissional, está demonstrado que a psoríase contribui para absentismo laboral, afeta as oportunidades de emprego e as perspetivas de carreira e associa-se a menor produtividade. Do ponto de vista económico, é de prever que a psoríase se associe a avultadas despesas pagas pelos doentes (consultas, tratamentos, produtos para cuidado da pele) e a sobrecarga financeira para o sistema de saúde.

HN- Quais as comorbilidades que mais agravam a condição destes doentes?

PM- Atualmente é amplamente reconhecido que a psoríase não é apenas uma doença de pele. Trata-se de uma doença sistémica, associada a comorbilidades cardiometabólicas (diabetes mellitus, resistência à insulina, obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia, síndrome metabólica), psiquiátricas (como depressão e ansiedade), artrite psoriática, doença inflamatória intestinal, uveíte, esteatose hepática não alcoólica, além da maior prevalência de hábitos tabágicos e alcoólicos. A inflamação sistémica crónica presente na psoríase tem sido sugerida como um fator de risco independente para as comorbilidades cardiovasculares e para o aparecimento de aterosclerose precoce (calcificação coronária, disfunção endotelial, espessamento da camada íntima-média das carótidas). O risco superior de eventos cardiovasculares (enfarte agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral), comparativamente à população geral, traduz-se em consequente aumento da mortalidade e uma diminuição da esperança média de vida em cerca de 5-6 anos. 

Por conseguinte, é crucial que o dermatologista reconheça precocemente estas comorbilidades, que podem ter um impacto significativo na sobrevida dos doentes e influenciar as opções terapêuticas.

HN- As comorbilidades associadas à psoríase verificam-se em grupos de doentes particulares?

PM- Os doentes com psoríase moderada a grave têm maior prevalência de comorbilidades e maior risco de doença cardiovascular major. Este aumento de doença cardiovascular poderá resultar de múltiplos mecanismos. Por um lado, a elevada incidência de vários fatores de risco cardiovascular, como obesidade, hipertensão, dislipidemia e diabetes (provavelmente geneticamente relacionada); por outro, a inflamação sistémica existente na psoríase que promove uma aterosclerose precoce. 

Foi constatado que doentes jovens (< 30 anos) com psoríase grave têm um risco aumentado de enfarte agudo do miocárdio e que doentes com menos de 50 anos e psoríase grave têm risco acrescido de acidente vascular cerebral. Como é expectável, este subgrupo de doentes tende a ter uma esperança de vida encurtada.

HN- O tratamento varia consoante as comorbilidades associadas à psoríase?

PM- A chave para o sucesso terapêutico passa pela individualização do tratamento, tendo em conta fatores como a extensão da doença, idade, sexo, recursos disponíveis, capacidade de adesão, preferência do doente e, efetivamente, as comorbilidades associadas. Para uma abordagem eficaz da psoríase é essencial considerar os diferentes domínios da doença psoriática na seleção da terapêutica, devendo o tratamento cobrir ao máximo o espectro da doença e ser direcionado tanto à inflamação cutânea como à sistémica. Assim, esta abordagem deverá ter em conta não apenas a componente cutânea, mas também a presença de lesões ungueais, artrite periférica, envolvimento do esqueleto axial, entesite, dactilite, doença inflamatória intestinal, uveíte e outras eventuais condições associadas à doença que podem impactar a seleção do tratamento e a monitorização a efetuar. Num exemplo prático, a presença de psoríase em placas e queixas articulares exigirá um fármaco sistémico que seja eficaz nestas duas manifestações da doença, distinta da abordagem caso o envolvimento fosse exclusivamente cutâneo. Noutro exemplo, se num doente psoriático e hipertenso a utilização de acitretina oral se adequa e a ciclosporina se contraindica, no doente psoriático com disfunção hepática inverte-se a recomendação terapêutica.

HN- Considera que os profissionais de saúde e a população em geral encaram a psoríase como mais do que uma doença de pele?

PM- Para o dermatologista é atualmente claro que a doença psoriática é uma patologia que não se restringe à pele e que se associa a múltiplas comorbilidades. Esta constatação pode não ser do conhecimento da maioria dos clínicos que não lidam diariamente com a doença, nem dos doentes, para quem muitas vezes a única manifestação visível são as lesões cutâneas. É por isso de suma importância que se encare a psoríase como uma doença multidimensional, se aumente a consciencialização para a psoríase e suas comorbilidades e se aborde o doente psoriático numa perspetiva holística e multidisciplinar.

 

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

Ronaldo Sousa: “a metáfora da invasão biológica é uma arma contra os migrantes”

Em entrevista exclusiva ao Health News, o Professor Ronaldo Sousa, especialista em invasões biológicas da Universidade do Minho, alerta para os riscos de comparar migrações humanas com invasões biológicas. Ele destaca como essa retórica pode reforçar narrativas xenófobas e distorcer a perceção pública sobre migrantes, enfatizando a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para políticas migratórias mais éticas

OMS alcança acordo de princípio sobre tratado pandémico

Os delegados dos Estados membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) chegaram este sábado, em Genebra, a um acordo de princípio sobre um texto destinado a reforçar a preparação e a resposta global a futuras pandemias.

Prémio Inovação em Saúde: IA na Sustentabilidade

Já estão abertas as candidaturas à 2.ª edição do Prémio “Inovação em Saúde: Todos pela Sustentabilidade”. Com foco na Inteligência Artificial aplicada à saúde, o concurso decorre até 30 de junho e inclui uma novidade: a participação de estudantes do ensino superior.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights