Mário André Macedo Enfermeiro Especialista em Saúde Infantil e Pediátrica

Plano nacional de saúde e ambiente

10/31/2021

Não há uma forma simpática de o dizer: as alterações climáticas representam a maior ameaça individual aos ganhos de saúde pública das últimas décadas. Os profissionais de saúde, e as comunidades por nós servidas, enfrentam um desafio sem precedentes, que não se esgota no espaço da nossa geração. Numa época em que a atividade humana é a principal causa das alterações climáticas, torna-se pertinente repensar e expandir o campo da atuação dos profissionais de saúde.

O ambiente tem profundos vasos comunicantes com a saúde. Dimensões como as alterações climáticas e seus impactos nos ecossistemas, perda de biodiversidade, acidificação dos oceanos, entre outras, produzem uma necessidade de uma maior interdisciplinaridade entre a saúde e o ambiente.

A ação necessária não é apenas local ou nacional. É em parte continental, em parte global. Na Europa, mesmo cumprindo com os limites do acordo de Paris, que significa um aumento de temperatura de 1,5ºC em relação aos níveis pré-revolução industrial, a região norte veria um aumento das inundações e fogos florestais. O sul da Europa, seria atingido por secas, aumento das temperaturas urbanas e declínio na produção agrícola. Ou seja, as alterações climáticas trazem consigo o aprofundar das desigualdades no continente.

A onda de calor de 2003 foi devastadora e assimétrica, atingindo de forma desproporcional os distritos do interior. Foi responsável por 1953 óbitos, a grande maioria, no grupo etário superior a 75 anos. Em 2013, uma nova onda de calor causou 1684 óbitos. Este tipo de fenómenos ocorrerá de uma forma mais recorrente e mais intensa. A preparação da comunidade para dar resposta a este problema, deve incluir a saúde, tanto na sua vertente preventiva como curativa. Preparar os processos e a necessária integração de cuidados para abordar esta questão, deve ser uma das prioridades do próximo plano nacional de saúde.

O aumento da temperatura não tem apenas impacto físico, produz igualmente os seus efeitos na saúde mental. Um interessante estudo italiano relacionou a utilização dos serviços de urgência, devido a problemas de saúde mental, com o aumento da temperatura. Quanto maior a temperatura, maior o volume de urgências direccionadas para o balcão de psiquiatria. O mesmo padrão tem vindo a ser relatado um pouco por toda a Europa, com aumento dos suicídios, casos de violência doméstica, insónias e ansiedade, a serem associados ao aumento das temperaturas.

As ondas de calor em ambiente urbano podem ser particularmente devastadoras. As cidades construídas para o carro e sem espaços verdes, podem ser até 10 graus mais quentes que ambientes rurais. Sofrerão de forma mais intensa com as consequências do aumento das temperaturas. Trata-se de um bom exemplo onde é obrigatório que ocorram sinergias entre disciplinas diferentes. Criar cidades saudáveis, também significa criar cidades resilientes e adaptadas às alterações climáticas.

Nas previsões efectuadas pelos peritos em alterações climáticas, as temperaturas médias em Lisboa, num futuro próximo, serão semelhantes às temperaturas médias do Cairo ou Bagdade hoje em dia. Não estamos preparados para viver, trabalhar e ter saúde com esta nova realidade. A instalação de sistemas de ar condicionado pode melhorar a situação, mas terá como consequência o aumento das emissões de gases produtores de efeito de estufa. O próprio preço da instalação e manutenção destes equipamentos criará uma nova secção, dentro daquilo que hoje designamos por pobreza energética. Não será apenas a incapacidade de aquecer a casa no inverno, abrangerá igualmente a incapacidade de a arrefecer no verão.

A COP26 que hoje se inicia é de extrema importância. Salvar o planeta é a nossa missão prioritária. Infelizmente, mesmo tendo sucesso, não será possível escapar às consequências imediatas das alterações climáticas. O novo plano de saúde tem de refletir esta difícil realidade, abrangendo de forma multissectorial, as dimensões do planeamento, prevenção, monitorização e tratamento. Só assim, será possível mitigar o enorme e negativo impacto que as alterações climáticas irão produzir sobre a saúde de todos nós.

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André Marques
Estudante do 2º ano do Curso de Especialização em Administração Hospitalar da ENSP NOVA; Vogal do Empreendedorismo e Parcerias da Associação de Estudantes da ENSP NOVA (AEENSP-NOVA); Mestre em Enfermagem Médico-cirúrgica; Enfermeiro especialista em Enfermagem Perioperatória na ULSEDV.

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