Sofia Pinto Ribeiro Médica Dentista, Beclinique

A boca não mente o que o coração sente.

11/25/2021

Periodontite e Doença Cardiovascular

A doença cardiovascular (DCV), como todos sabemos, é a principal causa de morte em todo o mundo, responsável por aproximadamente 32% da mortalidade global – o enfarte do miocárdio (EM) e o acidente vascular cerebral (AVC) são responsáveis pela maioria dessas mortes.

Todos conhecemos os principais fatores de risco para a DCV – estilo de vida, tabagismo, dislipidemia, hipertensão e obesidade.

A evidência demonstra que as condições inflamatórias crónicas podem aumentar o risco de DCV, sugerindo uma potencial ligação à periodontite.  Tendo em conta que a periodontite é uma doença com alta prevalência (45-50%), sendo actualmente a nível mundial a sexta doença mais comum, vale de facto a pena estudar a possível correlação entre a periodontite e outras patologias.

A associação da periodontite com quase 60 condições extra-orais, incluindo a hipertensão, obesidade, aterosclerose, diabetes e acidente vascular cerebral, é uma realidade. Nos últimos anos tornou-se evidente que a associação observada entre a periodontite e a DCV é mais do que um simples partilhar de fatores de risco comuns, pelo que cada vez mais se investiga a ligação entre estas duas patologias tão prevalentes.

Qual o mecanismo que levou a esta associação?

A associação entre a inflamação oral e a inflamação sistémica é fundamental para compreender os efeitos prejudiciais da inflamação oral nos vários sistemas de órgãos e a capacidade de a doença oral aumentar o risco de desenvolver uma doença não oral.

É já uma evidência que as espécies bacterianas orais presentes na placa bacteriana podem entrar na circulação e causar bacteriemia, após as atividades da vida diária como escovar os dentes, uso de fio dentário e mastigação; existe uma maior evidência desta realidade após intervenções profissionais como o alisamento radicular, extração dentária, cirurgia de dentes inclusos e sondagem periodontal.

A microbiota oral provoca inflamação, não somente no meio oral, mas pode também contribuir directamente para a inflamação sistémica, através da libertação de toxinas ou vazamento de produtos microbianos na corrente sanguínea. Para apoiar esta base teórica, há evidência que demonstra a presença de antigénios derivados de espécies bacterianas orais, principalmente patógeneos periodontais – Porphyromonas gingivalis e Actinobacillus actinomycetemcomitans – em tecidos aterotrombóticos, sugerindo que em pacientes com periodontite há uma maior probabilidade de um resultado positivo de correlação.

Estas bactérias parecem ser capazes de escapar à vigilância imunológica, resultando numa invasão bacteriana direta, causando endotoxemia e inflamação sistémica. Também se demonstrou níveis significativamente mais elevados de proteína C reativa em pacientes com periodontite e após terapia periodontal houve uma diminuição significativa dos mesmos níveis. Imediatamente após terapia há um aumento da inflamação sistémica aguda a curto prazo, bem como disfunção endotelial, mas, após 2 a 6 meses do tratamento, os marcadores inflamatórios baixam para valores inferiores antes do tratamento.

Outro estudo que avaliou a pressão arterial (MAPA 24 horas) após tratamento periodontal demonstrou uma redução da pressão sistólica e diastólica em média de 7,5 e 5,8 mm Hg, respetivamente; melhorou a dilatação mediada por fluxo e a melhoria na saúde oral reduziu os mediadores inflamatórios circulatórios ao longo de 2 meses.

Também na dislipidemia, outro factor de risco da DCV, foi demonstrado que os níveis séricos de colesterol total, LDL, triglicéridos e VLDL encontram-se elevados na periodontite. Estes níveis são também revertidos após terapia periodontal.

Em 2019 a European Federation of Periodontology (EFP) e a World Heart Federation (WHF) juntaram-se para rever a literatura no que toca à associação entre a periodontite e a doença cardiovascular. Desta revisão concluíram que existe evidência de que pacientes com periodontite, exibem disfunção endotelial significativa, mecanismo altamente disruptivo para a DCV.

Uma revisão sistemática identificou 6 estudos epidemiológicos que demonstraram um aumento do risco de um primeiro evento coronário em pacientes com periodontite, comparativamente a pacientes sem periodontite ou com periodontite estabilizada; outros dois estudos relatam uma associação entre a periodontite e a mortalidade cardiovascular mais elevada.

Há evidências da associação positiva entre a periodontite e doença cerebrovascular; pacientes com periodontite demonstraram mais do dobro do risco de AVC do que indivíduos periodontalmente saudáveis. Existe evidência consistente, embora mais limitada, de que indivíduos com periodontite têm maior prevalência e incidência de doença arterial periférica (DAP) em comparação com indivíduos sem periodontite.

E as outras doenças cardiovasculares? Vários estudos relatam associações positivas entre a periodontite e a insuficiência cardíaca, assim como uma incidência significativamente maior de fibrilhação auricular em indivíduos com periodontite.

Vamos agora olhar para os números da evidência

Uma meta-análise de 2019 com 5 estudos com 86.092 pacientes mostrou que indivíduos com doença periodontal tinham um risco 1,14 vezes maior de desenvolver doença coronária; outros estudos com 1.423 pacientes mostraram um risco ainda maior, 2,22 vezes, de desenvolver doença cardíaca coronária; este estudo mostrou que tanto a prevalência quanto a incidência de doenças cardiovasculares aumentam significativamente em pacientes com periodontite. Ainda neste estudo houve a confirmação da presença de DNA bacteriano em 42 placas de ateroma, cujas espécies mais encontradas foram P. gingivalis e A. actinomycetemcomitans, entre outras. Curiosamente, descobriu-se que P. gingivalis, exclusivamente, através da secreção de vesículas da membrana externa, pode induzir agregação plaquetária em amostras humanas, podendo ser responsável pela formação de trombos in vivo.

O que a evidência ainda não nos diz.

Atualmente, há evidências ainda muito limitadas de que a periodontite é um fator causal da DCV. É um desafio provar que a periodontite é uma fonte de inflamação que resulta na doença cardiovascular, principalmente porque aqueles com periodontite significativa geralmente têm outras causas potenciais de aumento da inflamação, como a diabetes e o tabagismo, que podem confundir os resultados clínicos.

Que cuidados deverão os profissionais de saúde e os utentes/pacientes ter?

Em 2019, a EFP e a WHF reconheceram a periodontite como um novo fator de risco cardiovascular estabelecido, que afeta os pacientes que sofrem ou têm risco aumentado de DCV. À luz disso, é importante alertar os profissionais de saúde e os próprios pacientes sobre a correlação já conhecida entre as duas patologias, apesar de ainda haver uma evidência limitada (devido a questões éticas) quanto à abordagem sistemática do tratamento periodontal em situações específicos, como por exemplo a hipertensão não complicada. Mais vale prevenir e melhorar todos os potenciais fatores de risco ao máximo do que esperar que a evidência nos demonstre.

A boca não mente o que o coração sente

Quanto aos Médicos-Dentistas, os pacientes com periodontite devem ser informados que sofrem de uma doença crónica e que há um risco maior de doenças cardiovasculares (entre outras) e, como tal, os mesmos devem gerir ativamente os seus fatores de risco cardiovasculares e promover visitas regulares ao dentista, para além de aconselhar e aumentar a motivação para uma maior higiene oral, adaptada a cada paciente periodontal.

Os pacientes com periodontite e simultaneamente DCV devem ser informados que podem ter um maior risco de complicações cardiovasculares e, portanto, devem aderir regularmente aos tratamentos e manutenção dentária recomendada. De forma a apostar na prevenção, o paciente que apresenta diagnóstico de DCV deve passar por um exame oral completo que inclui sondagens e índice gengival: se não for diagnosticada periodontite, os pacientes devem na mesma ser monitorizados regularmente; se for diagnosticada, deve-se proceder à terapia periodontal, quer seja cirúrgica ou não cirúrgica.

Será importante que os pacientes do Médico de Família e dos Cardiologistas, possam ser informados de que a periodontite pode ter um impacto negativo na DCV, aumentando o risco de eventos cardiovasculares; devem incentivar a monitorização e avaliação regular da saúde periodontal.

Os pacientes com DCV devem também ser questionados sobre o diagnóstico prévio de periodontite e sobre quaisquer sinais ou sintomas, como hemorragia gengival aquando da escovagem, mau hálito, abcessos gengivais ou mobilidade dentária.

Acima de tudo, é importante informar que a terapia periodontal eficaz pode ter um impacto positivo na Saúde Cardiovascular. A boca não mente o que o coração sente.

 

 

  1. Bui, F. Q., Almeida-da-Silva, C. L. C., Huynh, B., Trinh, A., Liu, J., Woodward, J., … & Ojcius, D. M. (2019). Association between periodontal pathogens and systemic disease. Biomedical journal42(1), 27-35.
  2. Carrizales-Sepúlveda, E. F., Ordaz-Farías, A., Vera-Pineda, R., & Flores-Ramírez, R. (2018). Periodontal disease, systemic inflammation and the risk of cardiovascular disease. Heart, Lung and Circulation27(11), 1327-1334.
  3. Del Pinto, R., Pietropaoli, D., Munoz-Aguilera, E., D’Aiuto, F., Czesnikiewicz-Guzik, M., Monaco, A., … & Ferri, C. (2020). Periodontitis and hypertension: is the association causal?. High Blood Pressure & Cardiovascular Prevention27, 281-289.
  4. Liccardo, D., Cannavo, A., Spagnuolo, G., Ferrara, N., Cittadini, A., Rengo, C., & Rengo, G. (2019). Periodontal disease: a risk factor for diabetes and cardiovascular disease. International journal of molecular sciences20(6), 1414.
  5. Moreno, S., Parra, B., Botero, J. E., Moreno, F., Vásquez, D., Fernández, H., … & Contreras, A. (2017). Microbiota periodontal y microorganismos aislados de válvulas cardiacas en pacientes sometidos a cirugía de reemplazo de válvulas en una clínica de Cali, Colombia. Biomédica37(4), 516-525.
  6. Naderi, S., & Merchant, A. T. (2020). The association between periodontitis and cardiovascular disease: An update. Current Atherosclerosis Reports22(10), 1-5.
  7. Orlandi, M., Graziani, F., & D’Aiuto, F. (2020). Periodontal therapy and cardiovascular risk. Periodontology 200083(1), 107-124.
  8. Periodontitis is associated with hypertension/ a systematic review and meta-analysis 2019
  9. Priyamvara, A., Dey, A. K., Bandyopadhyay, D., Katikineni, V., Zaghlol, R., Basyal, B., … & Lavie, C. J. (2020). Periodontal inflammation and the risk of cardiovascular disease. Current atherosclerosis reports22, 1-6.
  10. Sanz, M., Marco del Castillo, A., Jepsen, S., Gonzalez‐Juanatey, J. R., D’Aiuto, F., Bouchard, P., … & Wimmer, G. (2020). Periodontitis and cardiovascular diseases: Consensus report. Journal of Clinical Periodontology47(3), 268-288.
  11. Sia, S. K., Jan, M. S., Wang, Y. H., Huang, Y. F., & Wei, J. C. C. (2021). Periodontitis is associated with incidental valvular heart disease: A nationwide population‐based cohort study. Journal of Clinical Periodontology.

 

 

 

 

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

A má comunicação pode ser agressiva ao cidadão?

Cristina Vaz de Almeida: Presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde; Doutora em Ciências da Comunicação — Literacia em Saúde. Presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde. Diretora da pós-graduação em Literacia em Saúde. Membro do Standard Committee IHLA — International Health Literacy Association.

Crise de natalidade no Japão atinge o seu pico

O Japão registou, em 2024, a taxa de natalidade mais baixa de sempre, segundo estimativas governamentais e, no momento em que a geração “baby boom” faz 75 anos, o país confronta-se com o “Problema 2025”, segundo especialistas.

Cientistas detectam genótipos cancerígenos de HPV em esgotos urbanos

Cientistas uruguaios identificaram genótipos de HPV ligados ao cancro do colo do útero em águas residuais urbanas, sugerindo que a monitorização ambiental pode reforçar a vigilância e prevenção da doença em países com poucos dados epidemiológicos.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights