HealthNews (HN)- Portugal nunca formou tantos médicos de família – perto de 500 por ano há quase uma década, mas apenas 150 segue para o Serviço Nacional de Saúde. Qual a interpretação que faz do atual panorama?
Nuno Jacinto (NJ)- O grande problema é que não estamos a conseguir reter estes jovens especialistas e de tornar o Serviço Nacional de Saúde atrativo para eles. Isto tem-se verificado cada vez mais ao longo dos últimos anos. O panorama tem sido sempre igual e até se tem agravado nos vários concursos… E isto passa muito por algo que já temos referido várias vezes e que é a falta valorização e reconhecimento que a Medicina Geral e Familiar tem por parte da tutela. Ouvimos muitas vezes dizer que somos importantes e o pilar da Medicina, mas na prática isso não acontece… Basta olhar para tudo o que aconteceu durante a pandemia e todas as tarefas que foram alocadas aos médicos de família. Se a isto juntarmos a falta de valorização das carreiras, de condições de trabalho, de infraestruturas, de material clínico, de sistemas de informação, a fraca autonomia que existe a nível das equipas e dos ACeS… Temos aqui um cocktail de problemas que tornam o SNS pouco atrativo.
HN- Recentemente o presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos alertou que o número de utentes sem médico de família na região Centro pode chegar aos 400 mil “muito brevemente”. Considera que as promessas feitas pelo Ministério da saúde sobre mais “incentivos” serão suficientes para fazer face a este problema?
NJ- Essa questão dos incentivos tem de ser vista de forma enquadrada. Provavelmente podem resolver uma ou outra situação em particular, mas não resolvem tudo. Ou seja, não basta atirar dinheiro para tentar resolver os problemas. Há muitas questões, algumas das quais já mencionei anteriormente, que não se resolvem com mais dinheiro. Portanto, estes incentivos têm que ter significado. Muitas vezes estes são escassos e durante um curto período de tempo.
HN- Apesar de nos últimos anos termos assistido a um reforço das verbas para a Saúde, continuamos a verificar a degradação e fragilidade dos cuidados de saúde que são prestados pelo Serviço Nacional de Saúde. Que outras medidas devem ser executadas para garantir a qualidade do SNS?
NJ- Essa questão do reforço é sempre algo discutível. O problema está na forma como essas verbas são alocadas. O que os médicos sentem é que essas verbas não chegam a quem está no terreno e não chega nas mais variadas vertentes… Não temos mais equipamentos, não temos melhores sistemas de informação, em muitos casos, não temos problemas de infraestruturas resolvidos, as unidades não têm incentivos quando cumprem os objetivos da contratualização e passam vários anos sem os receber… Portanto, afirmarmos que se está a investir mais dinheiro sem que perceba muito bem onde leva-nos a que se repense o destino desse investimento. É importante que se perceba de uma vez por todas que os cuidados primários têm um papel central em tudo isto. Enquanto tivermos apenas palavras bonitas e não passarmos a ação continuaremos a assistir a uma fragilidade dos cuidados de saúde do SNS.
HN- Uma maior autonomia por parte dos cuidados de saúde primários poderia resolver os atuais problemas?
NJ- Ajudaria certamente. Esta questão da autonomia está prevista na reforma dos cuidados de saúde primários e que já leva quinze anos de evolução… O que se verifica na prática é que continuam os processos muito burocratizados e muito difíceis de ser mexidos. Esta autonomia das equipas e dos agrupamentos de centros de saúde seria fundamental para dar novas perspetivas aos médicos de família.
HN- A pressão nos serviços de urgência tem estado na ordem do dia nos últimos tempos, motivando fortes críticas sobre a falta de resposta pelos cuidados de saúde primários. Quais os motivos que explicam o aumento da pressão nos hospitais e o alívio nos centros de saúde?
NJ- Não há um alívio do lado dos centros de saúde. Quando dizemos que um determinado hospital teve um pico de afluência às urgências é bom ter a noção que a esmagadora maioria das situações de doença aguda continuam a ser resolvidas nos centros de saúde. Os médicos de família não estão parados e, se for preciso, para cada doente que entra na urgência hospitalar, entram quatro ou cinco para os centros de saúde… Isso nunca é valorizado. O problema tem de ser visto em conjunto. Obviamente que os cuidados de saúde primários têm um papel importante na resposta aguda, mas também existem falhas do lado hospitalar e de organização do sistema.
Por outro lado, se vamos ter progressivamente menos médicos de família e mais população a descoberto é natural que a resposta comece a ser mais deficitária e acabe por ter impacto noutros elos da cadeia. Não podemos assumir que o problema das urgências hospitalares e só uma responsabilidade dos cuidados de saúde primários. É um jogo do empurra que não interessa a ninguém.
HN- O trabalho administrativo que é imposto aos médicos é um fator limitativo da prestação de cuidados de saúde?
NJ- Sem dúvida. É um fator que limita o acesso dos utentes aos cuidados de saúde porque estamos a gastar parte significativa do nosso tempo em procedimentos burocráticos e, portanto, estamos a retirar esse tempo ao atendimento de outras situações. É um trabalho que nem precisaria de ser ninguém a fazê-lo. Quando temos um doente que precisam de faltar ao trabalho por um par de dias devido a sintomas ligeiros, poderia ser adotado aquilo que já existe noutros países – a declaração sob o compromisso de honra. Em vez disso andamos a obrigar utentes e profissionais de saúde a gastar tempo.
HN- Comemora-se hoje o Dia Mundial do Médico de Família. Quais as iniciativas organizadas pela APMGF para assinalar esta data?
NJ- A APMGF tem organizado várias iniciativas em vários locais ao longo desta semana. Temos parcerias com a Ordem dos Médico, nomeadamente na região Centro. A APMGF tem promovido também debates com a tutela e com a OM precisamente para discutir o papel do médico de família e da sua importância no sistema. O lema deste ano é ‘Sempre próximo para cuidar’ e acho que traduz muito bem a função dos médicos de família.
Entrevista de Vaishaly Camões
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