Subjacente a este título estão duas questões basilares de boa prática, ambas transversais a várias áreas de intervenção médica e cirúrgica – a anemia e a forma como se aborda a política transfusional.
Por um lado a anemia, uma condição que em Portugal atinge valores invulgares face ao que seria expectável, sobretudo a que resulta da sua causa mais comum, que são as situações de restrição (absoluta ou funcional) de ferro. Um estudo realizado pela Associação Portuguesa para o Estudo da Anemia veio evidenciar uma realidade preocupante – um em cada cinco portugueses adultos tem alguma forma de anemia. Se analisarmos a questão da carência de ferro, os números assumem ainda uma dimensão mais surpreendente – um em cada três portugueses tem falta de ferro (com ou sem anemia). Em última análise esta questão é uma “epidemia”, um problema de saúde pública que, apesar da sua dimensão, permanece oculto. Acresce que a grande maioria dos anémicos (ou com deficiência de ferro sem anemia), não têm noção da sua situação. Como tal, não procuram ajuda no sentido de esclarecer a sua condição clínica e tratá-la em conformidade. Importa desde já acentuar que, com frequência, sobretudo em determinadas faixas etárias, a anemia (ou a deficiência de ferro sem anemia) pode ser o primeiro sinal de uma situação grave.
A anemia traduz-se por uma redução de glóbulos vermelhos e da hemoglobina em circulação, o que compromete uma das funções mais nobres do organismo, sem a qual a vida seria inviável, que é o transporte de oxigénio a todos os órgãos e a todos os tecidos. Ao comprometer esta função, a anemia manifesta-se de diferentes formas, sendo que um dos sintomas mais frequentes, embora muitas vezes desvalorizado, é o cansaço invulgar para a atividade realizada. Há que valorizar esse cansaço e há que, sobretudo, partir da suspeita clínica. Além do cansaço, a palidez, as alterações do sono, alterações das unhas, da pele, dificuldade em respirar, agravamento de outras doenças subjacentes, são também sintomas que nos devem levar a questionar: Será anemia? E em seguida assumir o conceito que a anemia não é um diagnóstico final mas sim sinal de algo mais e, assim sendo, perante um caso de anemia, ao profissional de saúde impõe-se uma pergunta inevitável: Porquê?
As anemias por deficiência de ferro são as mais frequentes e a ferropénia, ainda sem anemia, deve constituir uma entidade a ser abordada objetivamente antes que a anemia apareça. É que, se não for, quase invariavelmente vai abrir um estádio mais grave de deficiência de ferro que é a anemia. O que significa que se configura um novo paradigma, que é abordar a deficiência de ferro ainda antes que ela se manifeste na sua expressão de maior gravidade.
Transpondo o problema para a terapêutica transfusional, importa posicionar a transfusão como uma das terapêuticas sobreutilizadas, cujo perfil de risco biológico, custos inerentes e disponibilidade variável, justificam a adoção de estratégias concertadas e conducentes à sua minimização por parte das instituições. Não no sentido redutor de poupar sangue, mas sim baseado no reconhecimento que sendo a transfusão capaz de em determinadas circunstâncias salvar vidas, não é uma terapêutica isenta de riscos, e como tal deve ser vista como uma intervenção que se faz apenas quando é inevitável e não existem alternativas. É esta a base do programa de Gestão de Sangue do Doente, tradução livre de Patient Blood Management (PBM), designação assumida na literatura internacional. Este programa assenta na valorização do sangue do doente enquanto recurso único e insubstituível, na abordagem individual e multidisciplinar com vista à sua preservação, na sinalização de doentes em risco de transfusão e no estabelecimento de um plano para minimizar ou eliminar necessidade de transfusão alogénica, num contexto de risco aceitável de anemia. Há que ter em conta que, por exemplo, a existência de um quadro de anemia prévio a uma intervenção cirúrgica, aumenta consideravelmente a probabilidade de o doente vir a precisar de transfusão no intra ou no pós-operatório.
A operacionalização deste programa assenta em três pilares fundamentais: 1) habilitação hematológica pré-operatória; 2) estratégias de minimização de perdas no período intraoperatório; 3) gestão da tolerância à anemia e reabilitação hematológica no período pós-operatório. A implementação de um programa de PBM requer uma abordagem compreensiva, adaptada às necessidades individuais de cada doente e apoiada por uma equipa multidisciplinar (médicos imuno-hemoterapeutas, cirurgiões, anestesiologistas e especialistas de cuidados intensivos entre outros), bem como por enfermeiros, farmacêuticos e outros profissionais de saúde. É esta a política seguida desde a sua abertura no Hospital dos SAMS, assente na evidência que indicia que a implementação de programas institucionais de PBM, permite reduzir transfusões e ao mesmo tempo interferir de forma proactiva na prevalência da anemia e da deficiência de ferro, mortalidade, duração do internamento, complicações, reinternamentos e também dos custos para os sistemas de saúde. É um programa consolidado, que muito nos orgulha e do qual muitos doentes (com anemia prévia ou, por exemplo, com objeção de consciência religiosa à transfusão) têm beneficiado.
Revendo agora os 35 anos que trabalhei no SAMS , na área da Cirurgia Plástica , posso dizer que se contam muito poucos os casos que precisaram de transfusão.
Mas esta perspectiva da avaliação prévia de ferropénia é de facto de valorizar.
Obrigada Prof. Robalo!