Entrou ontem em vigor a Lei do Orçamento do Estado para 2022 (LOE 2022), que, entre outros objetivos, pretende criar condições para fixar recém-especialistas em Medicina Geral e Familiar para colmatar a falta destes especialistas que na atualidade deixa de fora (sem médico de família atribuído) mais de 1,3 milhões de utentes prevendo-se que este número supere os 2 milhões até ao fim do ano.
Acreditando piamente que tudo foi feito para alcançar esse objetivo, a verdade é que a norma agora em vigor pode vir a causar mais dissabores do que alegrias a todos os envolvidos, incluindo o Governo.
Deixo um exemplo: o da redução da dimensão das atuais listas de utentes dos médicos de família para números funcionalmente aceitáveis. Isso acontecerá, diz a LOE, “Quando a taxa de cobertura total de utentes com médico de família for igual ou superior a 99 %”. Nada de muito complicado, tendo em conta que a mesma Lei reconhece que temos mais de1,3 milhões de utentes sem médicos de família atribuído. E que, sabemos nós, a tendência é de agravamento, se se vier a confirmar a passagem à reforma este ano, de 1000 especialistas que em breve estarão em condições de o fazer. Teríamos então o dobro dos utentes sem médico de família atribuído. E então, qualquer referência a 90% de cobertura não seria mais do que mera retórica estéril.
Mas há mais: para responder a responsabilidades políticas, estabelece-se que os mesmos médicos que terão de dar cobertura plena a todos os portugueses, terão ainda de acompanhar “os utentes de estruturas residenciais para pessoas idosas e outras estruturas residenciais para pessoas dependentes, nos mesmos termos em que fazem o acompanhamento aos utentes da sua lista de inscritos”. Uma tarefa extra (que gasta muitas horas e dedicação) caída do céu em cima daquilo que já é o muito o trabalho diário dos MF e sem qualquer enquadramento, apenas, insista-se para resolver as responsabilidades políticas.
Os incentivos financeiros para a contratação de médicos são também eles “estranhos” em termos de enquadramento. Diz a LOE que “No sentido de aumentar a taxa de cobertura de utentes por médico de família, e atenuar o impacto da demografia médica adversa que se verifica na área de medicina geral e familiar, em particular nalgumas regiões do país, os médicos recém -especialistas que, ao abrigo do Decreto- -Lei n.º 46/2020, de 24 de julho, sejam colocados em UCSP de ACES, cuja taxa de cobertura de médico de família seja inferior à média nacional, têm direito, a título excecional e temporário, para uma lista de 1900 utentes, a um suplemento remuneratório, correspondente a 60 % da remuneração base correspondente à primeira posição remuneratória da categoria de assistente da carreira especial médica ou da carreira médica”.
Entre as unidades carenciadas conta-se por exemplo o CS de Sete Rios. Os médicos que já trabalham nestas unidades carenciadas e que têm aguentado o barco continuam a ganhar o mesmo? Bem menos que os médicos que entram agora e que com a sua entrada as unidades até ficam menos carenciadas? Vai ser engraçado ver como se posicionam perante esta manifesta discriminação.
Outra das inquietações que surgem da leitura da LOE2022 é a da possibilidade de apresentação de candidaturas a USF de modelo A. ”Os médicos especialistas em medicina geral e familiar que, à data da entrada em vigor da presente lei, ocupem posto de trabalho num dos ACES identificados no despacho a que se refere o número anterior, podem apresentar, no corrente ano, candidatura para a constituição de USF de modelo A, não dependendo a sua constituição do despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde, a que alude o n.º 2 do artigo 7.º do Decreto -Lei n.º 298/2007, de 22 de agosto. Até aqui tudo bem. O problema é que o diploma não informa sobre quem lhe fornece os meios necessários como instalações e equipamentos? Nem indica quem lhes irá garantir aprovação?
Outra medida que inspira cuidados é a da passagem a modelo B, o objetivo da maioria das USF. Diz a LOE2022 que: “As USF de modelo A que sejam constituídas nos termos e ao abrigo do número anterior, bem como outras que, nos mesmos ACES, tenham sido constituídas em momento anterior à entrada em vigor da presente lei, transitam para modelo B no prazo máximo de três anos, desde que reúnam as condições legalmente previstas e de acordo com a calendarização definida por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde, até ao limite de 130 unidades no valor máximo de 39 000 000 €.
Dito de outro modo (apesar do lindo embrulho) : passam a modelo B “desde que…” e só na próxima legislatura. O que em termos de segurança jurídica é muito duvidoso.
Outra decisão emanada da LOE2022 é a da previsão de médicos não especialistas, vulgo, indiferenciados, poderem desempenhar as funções de Médico de Família. “Enquanto não houver condições para assegurar médico de família a todos os utentes dos ACES identificados no despacho a que se refere o n.º 6, os órgãos máximos de gestão dos serviços e estabelecimentos de saúde do SNS podem, a título excecional, celebrar contratos de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto, ou contratos de trabalho a termo resolutivo incerto, consoante o caso, na proporção de um médico por cada 1900 utentes sem médico de família, incluindo os que a ele não tenham direito por sua própria opção, com médicos habilitados ao exercício autónomo da profissão, aos quais compete assegurar consulta médica, especialmente em caso de doença aguda, aos utentes inscritos numa lista pela qual ficam responsáveis”. Aqui há uns anos, uma tentativa semelhante resultou numa greve geral de 3 dias. Veremos o que acontecerá agora…
E serve qualquer médico do mundo, para satisfazer a necessidade política de se resolver o descalabro dos utentes sem o dito. De facto, diz a Lei agora aprovada que “Excecionalmente, por um período temporário e transitório, e enquanto não houver condições para assegurar médico de família a todos os utentes, o Governo pode contratar médicos estrangeiros nas mesmas condições de qualidade, segurança e equidade em que são contratados os médicos portugueses.
Vamos lá ver o que é que a Ordem dos Médicos terá a dizer sobre isto….
PS: Só não servem acordos com Médicos de Família do sector privado (o que chegaria para resolver o problema dos sem médico de família…) quer em USFs de Modelo C previstas na lei socialista de Correia de Campos de 2006, quer com acordos individuai, quer mesmo o simples comparticipar nos mcdts prescritos por médicos de família privados aos utentes que voluntariamente por estes optassem, deixando o lugar no SNS livre para utentes sem médicos de família.
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