Neurocientista da Universidade de Coimbra alerta para perigo da visão “utilitarista” da ciência

14 de Julho 2022

O neurocientista da Universidade de Coimbra e investigador na área da psicologia básica, Jorge Almeida, alertou para o perigo da visão “utilitarista” da ciência, apontando a necessidade de equilíbrio entre a ciência básica e a ciência aplicada.

“A ciência atual é dominada pela síndrome do ‘aqui e agora’, numa abordagem radical que a reduz à sua utilidade, com consequências extremamente problemáticas para o futuro da nossa sociedade”, referiu o cientista no artigo de opinião “Underfunding basic psychological science due to the primacy of the here and now: a scientific conundrum”, publicado na revista científica “Perspectives on Psychological Science”.

De acordo com Jorge Almeida, é necessário um equilíbrio entre a ciência básica e a ciência aplicada.

“Uma das coisas que a atual pandemia nos ensinou é que, a longo prazo, a falta de financiamento na ciência básica pode ter terríveis consequências na forma com que as sociedades conseguem responder aos desafios globais. Por exemplo, não é difícil imaginar-se que estaríamos muito pior se não tivéssemos financiado anos e anos de pesquisa básica em biologia, o que permitiu a produção, em tempo recorde, da vacina contra a Covid-19”, sustentou.

Para Jorge Almeida, esse investimento não é só importante nas áreas da biologia, uma vez que para se poder intervir numa área de saúde ou de processamento mental “é necessário ter o conhecimento da psicologia e neurociência básica, de como funciona o sistema normal, numa ótica de compreensão e não necessariamente utilitária do ‘aqui e agora’”.

“Para intervirmos em populações com dificuldades de leitura, será obviamente essencial estudarmos e percebermos o modo como o sistema normal consegue ler e compreender textos. Se assim não for, e se nos focarmos na resposta a problemas imediatos, estamos condenados a perder todos os alicerces da ciência”, exemplificou.

Em concordância está a decisão da ONU de decretar 2022 como o Ano Internacional das Ciências Básicas para a Sustentabilidade, ou mesmo os múltiplos relatórios lançados pela UNESCO, que “apontam para o problema enorme que estamos a criar por pensar na ciência de forma exclusivamente utilitarista”.

Segundo o investigador, esta falta de representatividade da investigação básica também está presente nas instituições universitárias, e especialmente na psicologia.

No seu artigo, Jorge Almeida afirma que 50% do corpo docente dos Departamentos de Psicologia nas universidades em Portugal possui interesses de investigação em temas clínicos e de saúde e que cerca de 80 a 90% do corpo docente se centra em áreas da psicologia aplicada.

Os departamentos de Psicologia em Portugal “ignoram a investigação básica, tendo em média menos de cinco docentes dedicados à psicologia básica, em cerca de 60”, indicou.

Tal está “em contraciclo com a aposta de mais de quatro décadas dos Departamentos de Psicologia melhor classificados nos rankings internacionais, como Harvard, Yale, Leuven, Amsterdão, entre muitos outros, que têm a psicologia básica e a neurociência como pilares”.

No seu entender, a falta de equilíbrio entre a investigação aplicada e básica está também patente nas decisões da Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia (FCT), a principal agência nacional de financiamento da ciência.

De acordo com o artigo publicado na revista científica, na seleção de membros do último painel de avaliação para o concurso anual de projetos em todos os domínios científicos, o painel de psicologia foi composto por 15 investigadores internacionais, sendo que apenas três eram investigadores dedicados à psicologia básica.

“Este desequilíbrio teve consequências claras sobre os projetos que foram financiados”, sustentou.

Para Jorge Almeida, financiar e promover tanto a psicologia básica como a aplicada “terá um impacto na capacidade de lidar com os principais problemas de saúde mental provocados pela Covid-19 e com todos os principais desafios que enfrentaremos no futuro”.

Premiado pelo Conselho Europeu de Investigação pelo seu projeto “ContentMap”, que se propõe estudar de que forma a informação está organizada no nosso cérebro, nomeadamente se está estruturada topograficamente, como um mapa, Jorge Almeida é ainda docente na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e diretor do Proaction Lab – Laboratório de Perceção e Reconhecimento de Objetos e Ações.

LUSA/HN

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