HealthNews (HN)- “Ano após ano (…), a mesma história de crianças e adolescentes deixados para trás na resposta global ao VIH”, constata o relatório global da UNICEF, divulgado em novembro de 2022. Catherine Russell, diretora executiva, comentou que “estamos a falhar a próxima geração”. Mas o relatório não ignora o progresso e também mostra que há esperança. Devemos ver o copo meio cheio ou meio vazio?
Shaffiq Essajee (SE)- Eu sou pediatra e vi a mudança acontecer diante dos meus olhos; por isso, não posso negar que fizemos progressos. Quando comecei a trabalhar no VIH, em Nova Iorque, há muitos anos, estávamos a perder meia dúzia de crianças por mês para o VIH. As suas mortes eram dolorosas e na UCI.
As coisas mudaram drasticamente desde então. Temos a medicação disponível, em formulações cada vez melhores, mais opções para crianças, melhores formas de identificar as crianças do que nunca e, para mim, uma das conquistas mais notáveis da saúde pública em geral nas últimas décadas é a maneira como conseguimos prevenir a transmissão do VIH de mães para filhos. A redução do número de novas infeções nas crianças é incrível e não teria sido possível imaginar tal futuro há 20 anos. Portanto, houve definitivamente progresso.
O que eu acho que nos preocupa é que as pessoas pensam que o trabalho está concluído. Não se ouve falar muito sobre a SIDA em África, sobre a SIDA em geral. Acho que, em toda a parte, há uma espécie de aceitação de que é um problema de outra década, de que nesta década temos outras pandemias com que lidar, temos problemas maiores, há uma crise global, há fome e as crianças estão desnutridas e a morrer por desnutrição e doença evitável.
É nesse contexto que, às vezes, embora o copo possa estar meio cheio, não sei como iremos enchê-lo até ao topo. Temos motivos para celebrar, mas, ao mesmo tempo, preocupa-me muito que cheguemos ao final de 2030, fim dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, onde assumimos um compromisso global para acabar com a SIDA, e não estejamos lá para as crianças. Essa é a nossa verdadeira preocupação.
HN- Porque é que as crianças e os adolescentes estão a ser deixados para trás?
SE- Acho que parte do motivo é a história. Sempre foi mais difícil diagnosticar crianças, mais complicado tratá-las, havia menos dados sobre como os medicamentos funcionariam em crianças e se teriam maior toxicidade. Penso que, nos primeiros anos da epidemia, não entendíamos o suficiente sobre crianças, estávamos a sobremedicar e a ver muitos efeitos colaterais inaceitáveis. Podemos prevenir a infeção facilmente tratando as mães grávidas e garantindo que estas continuam em tratamento enquanto amamentam, para que o possam fazer em segurança. Mas a realidade é que continuámos hesitantes em tratar as crianças.
Bem, isso mudou. Se formos aos países mais afetados na África Subsaariana e África Austral, vemos que as crianças estão a ser diagnosticadas, estão a ser tratadas e que as suas taxas de cobertura são quase tão boas quanto as dos adultos. Mas não é o caso em muitas outras partes do mundo. Se olharmos para a África Central e Ocidental, por exemplo, vemos que as crianças, definitivamente, estão numa situação difícil. Aquelas crianças continuam a morrer com taxas inaceitavelmente altas, ainda não estão a aceder ao tratamento que deveriam ter. Por isso, para mim, o principal problema não é não sabermos o que fazer enquanto comunidade global, mas sim que não tenhamos assumido o compromisso, em todas as partes do mundo, de realmente enfrentar o desafio de tratar as crianças, apesar das dificuldades para usar estas novas ferramentas que temos disponíveis, e fazer a diferença na vida delas.
Acho que ainda existe esta ideia de que as crianças não infetam outras pessoas. Elas não podem transmitir o vírus aos outros porque, se o contraírem durante a infância, na idade adulta, provavelmente não estarão vivas. Num mundo que está agora muito focado em controlar a epidemia e prevenir novas infeções entre adultos, isso coloca as crianças numa categoria de prioridade inferior. Quer-se tratar os adultos que podem infetar outros adultos por meio da atividade sexual, de forma a evitar o próximo ciclo de infeções. Mas, para as crianças, elas não vão transmitir; então, os benefícios de tratá-las são realmente proteger a sua própria saúde e bem-estar.
As mulheres dizerem: “Obrigada, eu tenho tratamento agora, mas e o meu filho? É extremamente doloroso para mim ver o meu filho sofrer sem acesso a tratamento, quando eu tomo os remédios que me podem manter saudável”, essa voz tem faltado em muitas partes do mundo. Por causa disso, ainda não vimos o ímpeto político necessário para garantir que os casos pediátricos são priorizados no tratamento.
Portanto, costumava ser porque não tínhamos os medicamentos ou porque não podíamos testá-los bem. Agora temos todas essas coisas e o principal problema que sinto é a vontade política, uma determinação do governo nacional para dizer: “não, isto é inaceitável, temos que providenciar aos nossos médicos e enfermeiros as ferramentas de que precisam, temos que garantir que eles percebem o quão crítico isso é como prioridade”. Esse passo está a faltar em muitas partes do mundo. É por isso que continuamos a ver mais de cem mil crianças e adolescentes a morrer de SIDA todos os anos e mais de 300.000 novas infeções.
HN- O relatório afirma que “temos as ferramentas e abordagens de que precisamos para igualar os resultados do VIH para crianças e adolescentes e acabar com a SIDA nessa população de uma vez por todas”. Qual é a maior ferramenta da UNICEF? E qual a maior barreira?
SE- Em primeiro lugar, não são ferramentas da UNICEF. No início da epidemia, eram as organizações ocidentais como a ACT UP que lutavam pelo acesso ao tratamento, por medicamentos melhores. Pressionavam as autoridades reguladoras e os governos para garantir que esses medicamentos estavam disponíveis, gratuitamente, independentemente da capacidade de um cliente pagar por eles. Essa defesa foi absolutamente crítica e não poderia ter acontecido sem um movimento global. São sucessos partilhados, não apenas da UNICEF. Nós celebramos o trabalho dessa comunidade global.
Agora, temos medicamentos melhores do que nunca. Os medicamentos que temos hoje são mais seguros, são melhor tolerados, são uma vez ao dia. Anteriormente, as crianças precisavam de tomar medicamentos várias vezes ao dia, em horários diferentes – alguns medicamentos seriam duas vezes, outros seriam três vezes ao dia. Toda essa complexidade desapareceu. Agora, podemos dar à criança um comprimido, uma vez ao dia, numa formulação que é muito fácil para uma criança usar, para uma mãe dar ao filho. E é realmente mais eficaz, mais barato e melhor tolerado do que qualquer outro dos medicamentos que costumávamos ter.
O diagnóstico também é mais fácil. A COVID ensinou-nos que podemos testar-nos a nós mesmos e usar essa informação para tomar decisões sobre a nossa saúde e a nossa família. É, de certo modo, uma maneira revolucionária de pensar, mas nós temos essas ferramentas no VIH há muitos anos. Os testes rápidos de VIH têm sido capazes de diagnosticar a infeção com um grau de sensibilidade muito alto, em quinze minutos, e, embora tenha sido realizado em unidades de saúde, nos últimos anos vimos o mesmo teste ser fornecido aos próprios indivíduos, dizendo-lhes: “Façam o teste em casa, aqui está a embalagem, podem seguir as instruções e obter o resultado em casa”.
As crianças sempre foram muito mais difíceis de diagnosticar, especialmente as mais pequenas, porque qualquer criança nascida de uma mãe com VIH terá os anticorpos no seu sangue. Isso não significa que elas tenham o vírus, elas apenas têm os anticorpos. E o teste que usamos deteta os anticorpos. Então, todas as crianças nascidas de uma mãe com VIH terão anticorpos, vão testar positivo para o VIH, mas isso não quer dizer que realmente tenham a infeção. Detetar o próprio vírus costumava ser um teste muito complicado. Não estava amplamente disponível, especialmente em África, onde a necessidade era maior. Mas agora temos o que chamamos de point of care tests. São testes capazes de detetar a presença do vírus de forma muito confiável e simples. O equipamento não precisa de laboratório. Faz-se o teste e em 14 minutos obtém-se o resultado, se há vírus naquela amostra ou não. São inovações notáveis.
Também temos ferramentas de prevenção incríveis. Temos medicamentos que, se tomados diariamente, têm uma eficácia muito alta na prevenção da infeção pelo VIH – agora até disponíveis como injeção mensal. Pode-se receber uma injeção todos os meses que irá praticamente garantir que, independentemente da vida sexual, não se contrairá o VIH.
E os sistemas de saúde também são mais fortes. Os sistemas mudaram, os medicamentos são melhores, os testes são melhores, as tecnologias de prevenção estão amplamente aprimoradas, e estes ganhos foram alcançados por meio de um tremendo trabalho conjunto como comunidade global. Também temos isso. Temos o poder de uma comunidade global a trabalhar no VIH, a trabalhar para prevenir o VIH, de mãos dadas com as pessoas que vivem com VIH, com comunidades a viver com VIH. Estas são algumas das ferramentas. Ferramentas é uma palavra estranha, mas são realmente algumas das mudanças notáveis que tornaram o tratamento, a prevenção, o diagnóstico e os cuidados de que as pessoas precisam para levar uma vida saudável com VIH muito mais fáceis.
E qual é o nosso maior desafio? Eu já falei da vontade política, mas acho que também é um desafio monetário. Os medicamentos, embora sejam muito mais baratos do que já foram, continuam caros. Se pensarmos no orçamento nacional disponível para gastar em saúde per capita, na maioria dos países, esse orçamento está na faixa dos 5 a 10 dólares por indivíduo por ano – é o que eles têm para gastar em saúde pública por pessoa. Um medicamento para o VIH, por um ano, custa entre 50 e 70 dólares, dependendo do tipo de medicamento e de quanto se precisa. Portanto, há uma grande diferença entre o que os países podem pagar e o custo real para aquele indivíduo que precisa de tratamento. Tem sido possível durante todos estes anos porque doadores de grandes organizações multilaterais, doadores de organizações bilaterais e o Governo dos EUA financiam programas de VIH todos os anos.
O Fundo Global, que se reabastece anualmente com contribuições dos países, este ano [2022] conseguiu angariar mais 15 mil milhões de dólares para a resposta global à SIDA, TB (tuberculose) e malária. Estas instituições têm sido fundamentais no apoio à resposta global. Tem sido cada vez mais difícil para o Fundo Global reabastecer os seus recursos, e o Governo dos EUA, embora continue a dar apoio que vem dando… o valor gasto anualmente não mudou nos últimos cinco anos. Portanto, numa situação em que o dinheiro é limitado, os países estão a focar-se nas coisas que lhes darão mais valor: prevenir o VIH; assegurar que os adultos sexualmente ativos são tratados para garantir que não transmitem o VIH a outras pessoas.
Eu diria que o nosso maior desafio continua a ser o compromisso político de dizer que as crianças são igualmente importantes. Precisamos de garantir que direcionamos alguns fundos para os problemas das crianças.
HN- Quais são os problemas mais urgentes?
SE- Como pediatra, olho para a proporção de crianças com VIH em tratamento e é pouco mais de 50%. Isso significa que estimamos que existam 800.000 crianças com VIH e 400.000 adolescentes com VIH que não estão em tratamento. Então, para mim, é prioritário, em primeiro lugar, encontrar essas crianças, encontrar esses adolescentes e fornecer-lhes o melhor tratamento disponível. Porque nós sabemos que sem esse tratamento eles vão morrer.
O VIH é muito mais agressivo em crianças do que em adultos. Nem sempre é o caso e há diferenças consoante o tipo de vírus que se pode apanhar, que pode torná-lo mais agressivo num indivíduo, mas as crianças têm um sistema imunológico em crescimento, não são tão boas a defender-se contra o VIH, especialmente se o contraírem durante a gravidez ou na altura do parto. Se se apanhar VIH cedo, a probabilidade de morte sem tratamento é de 50% no segundo ano de vida. Quando se chega aos cinco anos, é de 80%. Se não se identificar essas crianças, elas morrem, e morrem de coisas comuns na infância. Elas podem apanhar tuberculose e morrer de tuberculose, podem apanhar uma infeção bacteriana grave, meningite, sepse… Podem estar gravemente desnutridas porque estão a usar toda a energia dos alimentos para combater o VIH e não têm a oportunidade de crescer e de se desenvolverem como deveriam; então morrem de desnutrição.
Muitas vezes, essas mortes nem são contadas como mortes por VIH – são ocultadas. A epidemia de VIH está escondida nessa mortalidade causada por outras condições. Acho que essa é provavelmente a maior prioridade: temos que descobrir novas maneiras de identificar essas crianças; temos que colocar essas crianças em tratamento o mais rapidamente possível. Mas o desafio não é apenas uma questão médica. Se fores a muitas partes da África Subsaariana, ainda encontras taxas muito altas de estigma e discriminação. As mães podem ter VIH e estar em tratamento, mas terem medo de levar os filhos a fazer o teste, ainda que estejam preocupadas. Elas temem que, uma vez conhecido o diagnóstico da criança, toda a família descubra, elas mesmas terão que revelar a sua identidade e o seu diagnóstico a outros membros da família, como é que essa criança apanhou VIH. As famílias têm tanto medo do estigma que, na verdade, isso impede-as de procurar cuidados para si e para os seus filhos. Acho que, além de fazer todo o trabalho médico, temos que enfrentar estes problemas de estigma e discriminação. Não são barreiras médicas, são barreiras sociais estruturais, de certa forma muito mais difíceis de enfrentar.
Podes desenvolver novos medicamentos, podes descobrir novas tecnologias para testes, mas não podes mudar o coração e a mente das pessoas com um comprimido ou com um teste. Isso requer um movimento social, requer governos que se levantem e digam que a lei proíbe qualquer tipo de discriminação. Exige que a sociedade civil diga que não podes expulsar uma mulher de casa porque ela te diz que tem VIH, que isso é crime. E acho que algumas dessas barreiras legais, estruturais e sociais são de certa forma as mais urgentes. Não temos pensado o suficiente nisso e focamo-nos nas coisas mais fáceis. Mas, se não abordarmos algumas dessas questões estruturais subjacentes, acho que não faremos o melhor uso das ferramentas que temos disponíveis.
HN- Para este Dia Mundial da SIDA, porquê “Equalize” como tema principal?
SE- O tema foi definido pela UNAIDS, o programa conjunto da ONU. De certa forma, só precisas de igualar algo se tiver havido progresso para um grupo ou numa área do mundo e falta de progresso para outro grupo e noutra área do mundo. É porque fomos bem-sucedidos que vemos essa desigualdade. É porque 76% dos adultos estão a receber tratamento que 52% em crianças parece incrivelmente baixo. Então, acho que o que equalize nos diz é que nós conseguimos, nós fizemo-lo para os adultos.
No Botswana, 95% dos adultos com VIH têm conhecimento do seu diagnóstico, 95% daqueles que foram diagnosticados estão em tratamento e 95% daqueles que estão em tratamento têm o vírus completamente suprimido e indetetável. Tem das taxas mais altas do mundo (20%/30% da população vive com VIH). Eles foram capazes de fazer isso para as suas populações adultas. Acho que o que queremos dizer com isto é que vimos essas concretizações notáveis, que antes eram inimagináveis, a acontecer em alguns dos países mais pobres do mundo, mas há pessoas que estão a ser deixadas para trás nessa resposta e precisamos de igualar a resposta para elas.
HN- Que mais pode a UNICEF fazer?
SE- Há coisas que a UNICEF faz bem e que devemos fazer continuamente. Em primeiro lugar está a defesa. Deveríamos ter mais entrevistas como esta, deveríamos estar em plataformas globais a falar sobre este assunto – e nós fazemos isso. Alertamos constantemente. É por isso que o comentário sobre o copo meio cheio vs meio vazio me fez sorrir, porque eu sinto que se nós enquanto UNICEF dissermos que estamos a ir muito bem, estamos a fazer um desserviço a essas crianças. Temos que continuar a alertar, temos que continuar a relembrar que existem 8,2 milhões de crianças e adolescentes não diagnosticados e não tratados que vão morrer de VIH se não os encontrarmos e tratarmos.
Temos que continuar a pressionar os governos, temos que continuar a pressionar os doadores, porque sem esse investimento estas crianças vão morrer. Com esse investimento, vimos crianças a ter uma vida saudável, a crescer na adolescência e, na idade adulta, a ter as suas próprias famílias.
O que antes era um diagnóstico mortal pode agora ser transformado numa vida normal, podendo-se ambicionar criar a própria família, ter um emprego seguro, receber educação e ter uma vida normal, que exigirá sempre tratamento para controlar o VIH.
Acho que a maior coisa que podemos fazer enquanto UNICEF é defender e garantir que as pessoas não esquecem que, apesar do sucesso, ainda não fizemos o suficiente pelas crianças.
Entrevista de Rita Antunes, dezembro de 2022
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