“Tal é o destino tecido pelos deuses aos miseráveis mortais: viver afligidos.”
Homero in Íliada
A fraude
“Ca vej’ agora o que nunca vi
E ouço cousas que nunca ói.”
Pero Gomes Barroso sec. XII
A mudança do percurso da vida profissional levou-me duma USF para uma consulta aberta, onde se atendem utentes sem médicos de família atribuído, ou com médicos temporariamente ausentes e esporádicos. Da experiência é mister dar testemunho, porque “(…) em muita repreensão cairíamos se por nós não fosse dito (…)”, parafraseando D. Duarte Pacheco Pereira.
O volume das tarefas das consultas abertas está inversamente relacionado com a produtividade, de forma geométrica. Esmiucemos: caso os utentes sem médico atribuído não cheguem aos 10% da população inscrita num dado centro de saúde, os profissionais disponíveis, recorrendo-se a horas extraordinárias, poderão disponibilizar um atendimento muito aceitável a esta população. Porém, à medida que esta percentagem aumenta, rapidamente os cuidados prestados se degradam e, se a população a descoberto chegar, digamos, aos 30%, a qualidade cairá para um nível péssimo.
Aqui chegados convirá prestar alguns esclarecimentos sobre as tão faladas “burocracias”. Para efeitos didáticos separemo-las entre atos clinico-burocráticos e … lixo. Um mesmo ato, por exemplo uma renovação dum CIT (vulgo “baixa”), pode ser resultado duma decisão clínica, caso o emissor saiba por que razão é clinicamente adequada essa renovação, ou lixo, caso o faça automaticamente, sob pressão, sem ter em conta se a situação do doente a justifica ou não. Outro exemplo: a renovação de receituário crónico. Será um ato clínico, mesmo sem a presença do doente, se for feita com conhecimento da sua circunstância clínica (de preferência após breve revisão do processo clínico) e tomando a decisão da reavaliação da prescrição de forma fundamentada. Caso contrário, estamos perante um ato de duvidosas utilidade e segurança. Por outro lado, temos tembém uma série de atos burocráticos impostos aos médicos de família e que não superam a fasquia da imbecilidade: relatórios para justificar terapia da fala, ou ensino especial, as “baixas” de doentes assistidos nos serviços de urgência hospitalares, declarações e declaraçõezinhas, cada uma mais tosca que outra. Enfim … os CSP são o vazadoiro de tarefas inúteis e desprestigiantes.
Ora, nas consultas de recurso, instituídas para atendimento das populações sem médicos de família, as tarefas que classifico de lixo crescem em proporção geométrica face à dimensão desta população, como já foi dito. Por razões só difíceis de compreender por quem estiver por fora desta dinâmica, o facto é que o tempo despendido a lidar com o lixo vai tomando o lugar das tarefas clínicas (úteis, não esqueçamos) como sejam as consultas presenciais. A pressão dos “papeis” a que é preciso dar rapidamente resposta (renovação de receituário, baixas, declarações, relatórios para juntas de revisão de CIT, transcrições várias) sobrepõe-se as tarefas assistências, mesmo que sejam casos de urgência clínica. Como se não bastasse esse paradoxal afastamento dos utentes, essa mesma pressão comprime a disponibilidade para avaliar com sentido crítico dois atos particularmente sensíveis: as “baixas” e as receitas. Os riscos de fraude e consequente erosão da riqueza e justiça social, no caso das primeiras, e o perigo para a saúde no que se refere ao receituário, são evidentes.
Há ainda um risco nesta dinâmica perniciosa: a ilusão que se trabalha muito nestas famigeradas consultas. Se o trabalho for medido, cegamente, em números de atos médicos, os decisores podem cair na tentação de o avaliar pela quantidade, ignorando-lhe a qualidade. Por exemplo, um médico que despachou uma quinzena de atos-lixo em 20 minutos, pode ser apreciado como mais produtivo, do que aquele, que nesse período consultou, respeitando as regras da boa prática, um só doente crónico. Só que, da atividade do primeiro resulta um amontoado de resultados que podem vir a ser negativos, inúteis ou benéficos, cujo somatório só por acaso será favorável. Bem vistas as coisas, a reprodução acéfala de documentos que lhe põe à frente dum médico dos CSP, numa consulta de recurso, podem ser executadas por quem tenha frequentado o 3º período do 1º ano da escolaridade. Basta saber ler e aprender a usar o SClínico. Assim sendo, uma inquietante questão se impõe: o salário dos médicos em funções nas consultas de recurso corresponde a quanto em termos de trabalho produzido? Por miserável que seja o vencimento, é seguramente demasiado para a qualidade e quantidade das tarefas realizadas.
Outro efeito lateral perverso, mas menosprezado pelos decisores: o desprestígio inerente a estas empreitadas é incompatível com a dignidade profissional dos clínicos.
Resumindo, o recurso a consultas abertas para minimizar o impacto da carência de médicos de família é, na maioria dos casos, um falhanço. Pior, uma fraude que não pode continuar a ser disfarçada. Num país esmagado por uma gigantesca carga fiscal nada pode ser mais pernicioso aos ouvidos do contribuinte do que saber que parte dos impostos são sorvidos por um enorme buraco negro instalado no SNS, chamado consultas de recurso.
Os bonecos
“As tuas consolações não me trazem qualquer conforto.”
Shakespeare in Rei Lear
Os cuidados de saúde estão pelas ruas da amargura, é inquestionável. Contudo, o ministro da tutela vai exibindo uma postura otimista e descontraída que desconcerta quem está “no convento” e “sabe o que lá vai dentro”. Perante a falta de profissionais manifesta o seu regozijo com a boa aceitação que os mesmos têm por essa Europa fora, graças à qualidade que lhes é reconhecida. Não haverá por aí quem recorde ao Sr. Ministro que o seu papel não é providenciar emprego no estrangeiro aos profissionais em falta no país, mas sim munir as unidades prestadoras de saúde com recursos humanos, para que possam cuidar dos cidadãos residentes em Portugal?
Veja-se o anúncio da abertura de milhares de vagas para médicos, que não passa uma quimera cujo fito propagandístico e corre sério risco de ser contraproducente. Nos CSP abriram, com pompa e circunstância, nada menos que 900 vagas. Contudo, apenas pouco mais de 300 internos terminaram a formação este ano. Recordemos que, historicamente, a percentagem dos que não concorrem aos lugares do SNS tem vindo a crescer ano, após ano. Por outro lado, seja dito que há mais outros candidatos para além destas três centenas. Assistiu-se recentemente a uma onda de exonerações de médicos de família, colocados no Vale do Tejo e Alentejo desejosos de se candidatarem às vagas do Norte. Mesmo com este reforço de candidatos, sobre cujas opções, no caso de não conseguirem os almejados objetivos de migração setentrional, seria arriscado especular, não é de vaticinar êxito para este concurso. Menos arriscado é apostar num fiasco embaraçoso. Sabendo isto, é difícil entender em que se baseia o otimismo tão falacioso quanto alarmante do Sr. Ministro que semeia falsas esperanças que redundarão em dolorosas desilusões.
Bem mais realista, o Prof. Fernando Araújo não esconde preocupação sobre as sombrias perspetivas do SNS. Contudo, no que toca aos CSP, deparamos com uma dissociação entre a lucidez na análise e imobilismo na ação. De concreto, apenas, nos vimos livre das famigeradas “baixas” inferiores a três dias, libertação que demorou sete anos (tantos quantos Jacob serviu Labão, na esperança de se consorciar com Raquel). Quanto ao fim da interdição de emissão de CIT nos Serviços de Urgência o Prof. Fernando Araújo disse o óbvio: é dum absurdo kafkiano. Mas melhor seria ter-lhe anunciado a abolição imediata. Porém, parece que não! Ainda não é desta, e lá vamos chafurdando no pântano da costumeira procrastinação. Quiçá mais sete anos!
Afadiga-se o Sr. Ministro da Saúde a demonstrar que nem tudo corre mal (e a olvidar o que não corre nada bem) e o Sr. Diretor Executivo do SNS a anunciar reformas profundas para os CSP, mas que, no momento em que escrevo, evocam o aforismo chinês “estão dez mil coisas prontas, falta o vento leste”.
Enfim, um lunático de mãos dadas com um tolhido.
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