Foi no arranque do ciclo de conversas médicas, uma nova iniciativa da HealthNews, que Elsa Azevedo, Diretora do Serviço de Neurologia do Hospital de São João e Professora de Neurologia da Faculdade de Medicina do Porto, quis deixar um alerta para o impacto da doença de pequenos vasos no desencadeamento do acidente vascular cerebral e no processo demencial. Em conversa com Jorge Polónia, Professor Catedrático de Medicina Interna da Faculdade de Medicina do Porto e Consultor Sénior de Hipertensão e Medicina Interna do Hospital Pedro Hispano, a especialista sublinha que a encefalopatia hepática isquémica é uma tradução da doença de pequenos vasos, bastante comum “em pessoas com hipertensão arterial e diabetes”.
HealthNews (HN) – Cada vez mais temos doentes e familiares com défices cognitivos e de memória, sendo que muitas vezes o médico de família tem alguma dificuldade em fazer o diagnóstico antes da respetiva referenciação. Para além do exame clínico, a que é que o médico pode recorrer para obter um diagnóstico mais preciso?
Elsa Azevedo (EA) – É uma questão muito pertinente dada a alta prevalência de queixas cognitivas. Na verdade, diria que mais do que os exames complementares de diagnóstico é muito importante avaliarmos, com particular atenção, determinados parâmetros da história clínica, de modo a conseguir contextualizar aquelas queixas. Portanto, é essencial percebermos que tipo de doente é (idade, grau de escolaridade, situação profissional e contexto social em que se insere) e questionar sobre o tempo de evolução dessas queixas. Por exemplo, se tivermos um indivíduo que tenha tido a sua funcionalidade normal até há alguns meses e, de repente, for notória uma alteração cognitiva, isso significa que é um caso urgente, pois pode sugerir uma encefalia autoimune ou um tumor, etc. É por isso que o padrão evolutivo é muito importante. O médico tem de conseguir distinguir as queixas cognitivas “benignas” das doenças neurodegenerativas.
HN – Que testes (MOCA, MM, etc.) vale a pena serem feitos?
EA – Deixaria os testes quase para o fim. Na verdade, o mais importante é percebermos a história clínica do doente.
HN – Hoje em dia, fala-se muito da doença de pequenos vasos. Enquanto grande conhecedora desta área, qual é a importância que esta condição tem na doença cerebrovascular e no processo demencial? O que pode ser feito para prevenir este tipo de situação clínica?
EA – Se tem importância? Tem e muita. De facto, se por alguma razão fizermos uma TAC ou ressonância num indivíduo hipertenso, com mais de 65 anos, é muito frequente encontrarmos sinais evidentes de uma doença de pequenos vasos. O somatório das várias oclusões dos pequenos vasos pode provocar uma disfunção do funcionamento interneuronal, uma alteração consequente da capacidade cognitiva e afetar o desempenho das atividades da vida diária. A doença de pequenos vasos pode conduzir a um acidente vascular cerebral, demência, etc.
HN – A encefalopatia hepática isquémica é uma tradução da doença de pequenos vasos?
EA – Sim. É uma tradução da doença de pequenos vasos já com alguma importância e coalescência das várias áreas de oclusão isolada desses pequenos casos.
HN – É comum a partir dos 70 e 80 anos?
EA – É comum em pessoas com hipertensão arterial e diabetes. Daí ser extremamente importante tentar detetar os indivíduos em risco para tentar prevenir a doença de pequenos vasos. Por outro lado, é curioso que estudos realizados pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto concluam que o próprio consumo de sal pode ser um fator de risco para esta doença.
HN – A doença de pequenos vasos é reversível?
EA – Não. É por isso que, depois de ser detetada, devemos tentar estabilizá-la o mais possível, controlando as suas causas.
HN – O AVC é a doença que mais mata em Portugal. O que tem mudado a nível da prevenção e tratamento nos últimos anos?
EA – Numa perspetiva otimista, diria que tratamos mais doentes hipertensos e que o tabagismo tem vindo a diminuir. No entanto, temos de ter consciência de que a população em risco (os idosos) aumentou. Portanto, vamos ter de trabalhar mais na prevenção. Temos de fazer a deteção dos fatores de risco de uma forma mais agressiva. Temos de olhar para a diabetes, a hipertensão, a dislipidemia, o tabagismo, mas também para a fibrilhação auricular e para a doença carotídea. No fundo, se quisermos mudar o cenário do AVC em Portugal vamos ter que atuar muito no adulto jovem e, logo a partir dessa altura, controlar os fatores de risco.
HN – E em relação à fase aguda da doença, o que é que mudou?
EA – Nos últimos anos mudou, sobretudo, o tratamento de revascularização. De facto, estamos acima da média europeia na trombectomia mecânica. De qualquer forma, tenho algum receio… Não temos bons marcadores de evolução de incapacidade. É muito importante que estes tratamento sejam feitos em tempo útil. O que eu tenho visto é que apenas uma pequena minoria de casos liga para o 112 quando surgem sintomas de AVC. Este contacto assegura que o doente chega ao hospital, onde tem o tratamento devido. Mas apenas 15% é que liga para o 112. Portanto, os doentes chegam tarde e não são logo identificados. Temos de conseguir aumentar a literacia da população para os sinais de alerta de acidente vascular cerebral – dificuldades de fala, boca ao lado, falta de força num lado do corpo.
HN – Até que ponto a Covid-19 causou, quer na fase aguda quer na subaguda, alterações cognitivas? O que sabemos sobre este impacto?
EA – A Covid-19 é uma doença que afeta o sistema nervoso central e periférico. Nos doentes internados, a incidência de alterações cognitivas é bastante grande – com síndromes confusionais, acidentes vasculares cerebrais e crise epilética.
Felizmente, com as vacinas tivemos um decréscimo destes casos mais graves e, portanto, tivemos menos doentes com estes quadros de expressão neurológica aguda. De qualquer forma, temos a noção de que pós fase aguda temos uma prevalência razoável de casos de sintomas prolongados (cefaleias, tonturas, miopatia, perda de olfato e paladar e dificuldades de concentração e atenção).
HN – Há tradução imagiológica destas alterações?
EA – Acreditamos que não se trata de alterações que tenham origem no psiquismo do doente… Consideramos que a maior parte não estará relacionada com perturbação neurológica funcional. Na maioria dos casos não conseguimos objetivar imagiologicamente estas alterações. De qualquer forma, têm de ser abordadas e tratadas de acordo com o sintoma.
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