A Saúde Pública é um universo, desejavelmente articulado da ciência e da prática no terreno. A sua responsabilidade de desenvolver e implementar políticas, programas e ações que visem a promoção, defesa da saúde e a prevenção de doença não tem sido salvaguardada em Portugal, por falta de investimento e falta de atenção a um sector que pode verdadeiramente ter maiores impactos a médio e longo prazo.
Em abono da verdade, a própria organização e alocação de recursos na área dos Serviços de Saúde Pública tem deixado muito a desejar, cometendo-se erros capitais como ter permitido que as Unidades de Saúde Pública se tivessem tornado uma espécie de reserva funcional para problemas que ninguém quis resolver de forma estruturada e atempada. O maior exemplo é o caso das Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade, e previamente Atestados Médicos para Cartas de Condução.
Uma e outra situação são exemplos claros da ausência de soluções estruturais e que permitam a função devida do Estado assim como o direito de acesso dos utentes. Espera-se que, também graças a iniciativas da atual Direção Executiva que estes problemas se resolvam rapidamente, libertando recursos.
Diga-se que eles vão ser bem necessários. Enfrentamos desafios tremendos no Serviço Nacional de Saúde. Temos um envelhecimento populacional marcado, com a respetiva carga de doença, num país que figura entre os seus congéneres europeus como um dos piores em qualidade de vida após os 65 anos. As desigualdades em saúde terão tendência para se agravar, nomeadamente se não se conseguir inverter a quebra de acesso do SNS em vários pontos no país.
Esta é uma verdade cristalina pouco falada: não existe só um SNS. Existem vários, com um gradiente de acesso que se deteriora, de forma simplificada, de norte para sul. Há realidades extraordinárias como a implementação de rastreios populacionais que são, até à data, de implementação extremamente assimétrica entre regiões de Saúde. É também uma incógnita importantíssima perceber como é que ser quer resolver e intervir nesta área dos rastreios, tão importante para ganhos em Saúde, com a cobertura nacional devida.
A prevenção precisa de revisitar e apoiar os especialistas nas áreas clássicas da alimentação saudável, do exercício físico e do combate aos excessos no consumo de substâncias como o tabaco e o álcool. Nota-se que há capital por aproveitar na área da ciência comportamental e na definição de políticas públicas inovadoras. Neste domínio, é necessário um claro investimento na formação no domínio da comunicação de risco, algo que se verificou ser claramente insuficiente durante várias fases da pandemia, com vários erros evitáveis.
As doenças infeciosas apresentam novos desafios e velhos inimigos. A Covid-19 e a preparação para novas pandemias. As alterações climáticas trazem colonização do continente europeu com vetores até então estranhos ou esquecidos. Alguma condescendência face a novas soluções preventivas e terapêuticas do VIH abriram a porta para novo impulso em surtos e epidemias de infeções sexualmente transmissíveis. Pouco se ouve sobre isso enquanto são vários os colegas no terreno a apontarem dificuldades crescentes neste âmbito. Qual é o plano de comunicação para mudar atitudes e comportamentos?
Ainda nas alterações climáticas, o incremento de movimentos migratórios colocará também pressão na assistência e no combate aos problemas que se irão deslocar com as pessoas em fuga. Vítimas amiúde de violência, que se poderá tornar mais comum em zonas afetadas.
Ao elencar todos estes problemas, é quase impossível não frisar que são necessárias abordagens multidisciplinares, articuladas e devidamente financiadas. Temos desafios específicos enquanto País que não devemos deixar de enfrentar como, por exemplo, a eliminação da tuberculose. Não é difícil: basta que exista o pequeno investimento numa área desvalorizada com uma pequena fração do que se gasta em tratamentos dispendiosos. Se continuarmos agarrados à lógica da atração por medicamentos e tecnologias mais caras sem ponderar e incluir no raciocínio de priorização os pequenos investimentos em soluções clássicas, mas com elevado custo-benefício, não conseguiremos ter a eficiência pretendida e, sobretudo, soluções efetivas.
Isto não é um ataque à inovação. Muito pelo contrário. É a devida ponderação da sua adopção e do aproveitamento devido dos recursos e soluções já existentes antes da disrupção e sobrecarga financeira em tratamentos em vez da prevenção. A tecnologia é vital para reformular os Serviços de Saúde Pública. Aliás, contamos hoje com especialistas e médicos internos extremamente talentosos que devem ser rentabilizados nesta nova realidade das ULS. O pensamento epidemiológico, o planeamento em Saúde e a mistura de competências que trazem na área da ciência de dados e computação podem poupar milhões ao país. Saibamos colocá-los, saibamos incentivar a sua permanência e dar-lhes a devida responsabilidade para fazerem a diferença.
Existe toda uma interligação com organizações europeias e mundiais que deve ser acarinhada para maximização das nossas potencialidades na Saúde Pública. No entanto, e na continuidade do que foi dito, é preciso dotar os serviços de condições para fazerem a diferença. Começando nas instituições nacionais de referência: Direção Geral de Saúde e Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. Nestas, como noutras áreas qualificadas da Função Pública, assiste-se a uma fuga alarmante de quadros.
Pede-se, como último ponto, e em última análise, uma liderança que faça a diferença e que permita que estejamos todos melhor preparados para fazer face a todos estes desafios.
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