Dulce Pascoalinho: “Há uma utilização de antibióticos indiscriminada e desadequada”

De acordo com a especialista em Medicina Intensiva, Dulce Pascoalinho, a nível mundial e nacional “existe um profundo desconhecimento sobre a importância da correta utilização e os efeitos adversos” dos antibióticos. No âmbito da Semana Mundial da Consciencialização da Resistência aos Antimicrobianos, a médica alerta para as consequências nefastas do uso indiscriminado e desadequado desta “arma terapêutica”. “As pessoas têm de perceber que os antibióticos só tratam infeções provocadas por bactérias”, reforçou. 

HealthNews (HN)- Os microrganismos resistentes aos medicamentos representam cada vez mais uma ameaça para a saúde humana. Trata-se de uma pandemia silenciosa?

Dulce Pascoalinho (DP)- Sem dúvida nenhuma. A resistência aos antimicrobianos é um problema global. Não há nenhum país nem continente que esteja livre deste problema. Por este motivo, a Organização Mundial da Saúde priorizou, em 2021, esta luta contra a resistência aos antibióticos, tornando-se um dos seus enfoques sobre ameaças de saúde pública.

Temos dados de 2019 que nos dizem que, apesar dos esforços que já têm sido feitos neste sentido, houve pelo menos cinco milhões de mortes no mundo que estiveram relacionadas com infeções provocadas por bactérias resistentes e 1,2 milhões foram mortes diretas.

HN- Quais as principais razões que têm motivado a resistência aos antimicrobianos?

DP- A resistência aos antibióticos é algo natural. É uma forma evolutiva destes microrganismos se adaptarem aos diferentes ambientes. Mas o que é que nós fazemos para estimular ainda mais aquilo que já é natural? Ao expormos as bactérias aos antibióticos, estimulamos a aceleração do aparecimento destes mecanismos de resistência. Portanto, a principal razão para que isto aconteça é a pressão antibiótica que exercemos sob as bactérias quando utilizamos antibióticos na medicina humana, veterinária e agroalimentar. Há uma utilização de antibióticos indiscriminada e desadequada no mundo.

Por outro lado, existem alguns fenómenos de ampliação relacionados com locais como hospitais. Nestas unidades de prestação de cuidados de saúde é muito fácil as bactérias serem transmitidas entre pessoas.

HN- Quais as consequências da resistência aos antibióticos? Que tipo de “estragos” pode gerar na saúde dos doentes?

DP- Esta é uma pergunta muito importante. O facto de perdermos esta “arma terapêutica” que a ciência nos deu, pode acarretar um enorme retrocesso. A medicina moderna que conhecemos só existe graças aos antibióticos. Sem eles não poderíamos tratar doenças oncológicas ou até realizar cirurgias. É preciso frisar que os antibióticos foram dos maiores contributos para a Medicina do início do século XX.

Infelizmente, aquilo que se prevê atualmente é que, se nada fizermos, à medida que a multirresistência está a avançar, em 2050 voltamos ao panorama em que as doenças infeciosas matam mais do que as doenças crónicas.

HN- Qual a importância do diagnóstico In Vitro no controlo da infeção e das resistências antimicrobianas?

DP- O conhecimento das ecologias na comunidade ou nas instituições de saúde e a identificação precoce, ou seja em tempo útil e exacta, dos microrganismos envolvidos e das suas susceptibilidades, no caso da infeção, e a identificação de perfis de resistência no caso da colonização são peças essenciais no garante do sucesso de qualquer estratégia de prevenção e controlo das resistentes aos antimicrobianos.

HN- Em Portugal, a resistência aos antimicrobianos é preocupante?

DP- Não estamos livres deste fenómeno. A nível nacional temos um problema importante de resistência aos antibióticos, tanto para bactérias Gram-negativas, como para bactérias Gram-positivas. No entanto, os últimos dados que temos são encorajadores. O último relatório do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças indica que conseguimos reduzir os principais agentes que são monitorizados em relação aos perfis da resistência. Isto quer dizer que estamos a conseguir ter intervenções que estão a surtir efeito. Embora tenhamos um longo caminho para percorrer, estamos a ir na direção certa.

HN- Significa que a nível nacional este problema não está a ser ignorado?

DP- Não está de todo. Existe a nível governamental essa preocupação. Isto foi muito claro com a criação, em 2013, do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA). Mais recentemente, em 2022, houve também uma renovação do despacho que regulamenta este programa, empoderando-o ainda mais. Tudo isto é um sinal claro de que em Portugal este problema não é desvalorizado.

HN- Apesar de verificarmos alguns sinais positivos, não estamos livres deste fenómeno. Que medidas devem ser adotadas para evitar o uso excessivo e incorreto dos antimicrobianos? 

DP- A nível do cidadão tem que se conseguir aumentar a literacia em saúde. Ainda existe um profundo desconhecimento, na população em geral, sobre as questões dos antibióticos, a importância da correta utilização e sobre os efeitos adversos. Saber quando é que os devem e quando é que não os devem tomar é muito importante. As pessoas têm de ter noção dos riscos e benefícios, uma vez que os antibióticos têm sempre malefícios associados. Estes não destroem só as infeções, mas também o nosso microbioma.

Esta consciencialização tem de ser feita tanto em adultos, como em crianças. É muito mais fácil mudarmos comportamentos nos mais novos. Por exemplo, o (PPCIRA) está a trabalhar, de forma muito intensa, em conjunto com todas as escolas na sequência de uma parceria com a Direção-Geral da Educação e o Infarmed. Isto vai permitir mudar o paradigma de forma muito mais sustentável.

É importante termos também programas de stewardship antimicrobiana. Têm sido um veículo extremamente importante para a diminuição da prescrição de antibióticos.

HN- E para quem tem de fazer mesmo antibiótico, quais os conselhos e indicações que deixa?

DP- As pessoas têm de perceber que os antibióticos só tratam infeções provocadas por bactérias… Portanto, tudo o que sejam infeções provocadas por vírus, como são normalmente as gripes e a maior parte das gastroenterites, não há lugar ao tratamento com antibiótico.

Por outro lado, muitas infeções ligeiras nem sempre necessitam deste tipo de tratamento. O sistema imunitário por si só pode ser perfeitamente suficiente para combater infeções ligeiras, mesmo sendo de origem bacteriana. Algumas infeções urinárias podem desaparecer com um reforço da hidratação. Isso significa que ter uma infeção não é sinónimo de utilizar antibiótico.

Mas respondendo à pergunta. No caso de haver indicação, o médico orienta o doente para a forma como o antibiótico deve ser tomado, alertando sobre os tempos, as doses e a duração. Estas indicações devem de ser escrupulosamente cumpridas. 

HN- Muitas pessoas não fazem o antibiótico até ao fim. A interrupção do tratamento com antibiótico pode levar a uma reinfeção numa forma mais grave?

DP- O uso do antibiótico tem de ser feito à luz daquilo que disse antes. Quando falamos “até ao fim” é até ao fim do tempo que foi indicado pelo médico. O médico para uma mesma infeção pode dar a indicação de tempos diferentes de tratamento. Só assim é que teremos a certeza que a infeção será tratada. Caso contrário, a infeção pode reaparecer com bactérias mais resistentes.

HN- Qual a mensagem que gostaria de deixar para assinalar a Semana Mundial da Consciencialização da Resistência aos Antimicrobianos?

DP- Os antibióticos são um bem precioso. É a nossa responsabilidade preservá-los para o agora e para as futuras gerações.

Share This
Verified by MonsterInsights