Rui Guimarães: “Era muito importante que existisse um sistema de certificação das fontes de informação” 

04/04/2024
Em Portugal, o acesso dos investigadores a dados médicos cumpre as regras? Como certificar a idoneidade das fontes? O que é ser um bom investigador? Foram estas as perguntas que marcaram a nossa conversa com o Responsável pelo Acesso à Informação (RAI) na Unidade Local de Saúde São João (ULSSJ). Em entrevista ao HealthNews, Rui Guimarães admite ter "muitas dúvidas" de que o acesso aos dados clínicos dos doentes seja feito de acordo com as regras previstas na Lei. 

HealthNews (HN)- O acesso aos dados clínicos dos doentes para efeitos de investigação é feito de acordo com as regras de acesso a dados previstas na Lei?

Rui Guimarães (RG)- Pessoalmente tenho muitas dúvidas… Haverá hospitais que cumprem a lei do acesso e haverá outros em que alguma tradição ou modo de agir, que nada têm a ver com o ordenamento jurídico vigente, ainda perdura. No caso do Hospital de São João, de onde sou responsável pelo acesso à informação, qualquer investigador que pretenda aceder a registos clínicos tem que ter a devida autorização, assim como tem de passar pela comissão de ética e por outras entidades, nomeadamente pelo encarregado de proteção de dados. No São João há muitos anos que este percurso existe. É uma garantia de que os direitos dos titulares de informação estão salvaguardados. No entanto, a nível nacional tenho algumas dúvidas de que esta prática aconteça, com este rigor, em todos os hospitais.

HN- Como se certifica a idoneidade das fontes?

RG- Essa é uma pergunta muito interessante. Em 2017, publiquei um artigo exatamente com essa preocupação de fazermos uma certidão que atestasse que a legitimidade do investigador tinha sido reconhecida ao abrigo da lei.

Em Portugal, dizemos que determinada investigação ocorreu com registos clínicos à guarda legal e institucional da instituição. É isto que se diz normalmente e a meu ver é muitíssimo vago. Pelo contrário, devíamos identificar cada um dos processos clínicos a que o investigador teve acesso (dizer-se se aquele processo se encontra em ambiente de papel, digital ou em ambos) e indicar a última data de atualização. Se isso fosse feito dava garantias de idoneidade das fontes a toda a investigação, com grande benefício para o investigador, para a instituição, para as editoras e as revistas que publicam os trabalhos científicos. Esse é um objetivo que está por cumprir… Esperamos que as coisas venham a mudar e tenho a esperança de que existam instituições com esta preocupação de certificar as fontes.

HN- É ético o acesso a dados clínicos sem prévia autorização dos seus titulares?

RG- A lei o que diz é que o investigador deve exibir uma autorização de cada doente. É claro que se existe uma investigação em que vai ser preciso consultar 500 ou 600 processos… Isso causava uma entropia que parava simplesmente a investigação. Portanto, quando o nosso legislador exige a autorização dos titulares de informação, nós temos de refletir sobre o que é que o legislador quer com este requisito. A preocupação do legislador é garantir o sigilo, a privacidade e a confidencialidade dos dados em causa. É isso que temos feito no São João há muitos anos. Qualquer investigador, para ter acesso aos registos clínicos e não tendo autorização dos titulares, assina um compromisso jurídico de garantia de sigilo, privacidade e confidencialidade. É com este compromisso que consigo ter a segurança necessária de que aquela pessoa vai, de facto, garantir o sigilo, privacidade e confidencialidade. A mera autorização como a lei fala, na minha opinião, não serve para nada. Não é viável que o investigador traga as 500 autorizações. Há casos em que a pessoa já morreu, outras em que a morada não é a mesma… É por isso que,  quem está no terreno tem de pensar nestas questões todas. Quando falo nestas investigações, falo daquelas que são feitas com base na reutilização de registos clínicos que nasceram da prestação de cuidados, não estou a falar dos ensaios clínicos. Isso é completamente diferente.

Por outro lado, a lei do acesso e da reutilização incluem outra condição que provoca alguma vontade de rir e que é a anonimização da informação sem possibilidades de reversão. Em primeiro lugar, porque nenhuma diretiva europeia faz esta exigência. Em segundo lugar, essa anonimização que está prevista na lei é impossível de fazer. Não sou eu que o digo, são os matemáticos.

HN- O que é ser um bom investigador? É aquele que mais publica? É aquele que é mais citado?

RG- Essa é uma questão muito importante. Hoje em dia, os investigadores são pressionados para fazerem a sua carreira académica, publicarem artigos, há indicadores de citações… Tudo isso é apreciado por quem quer continuar a ter o seu lugar no centro de investigação. Na minha opinião, não acho que esse tipo de abordagem seja correta. Um bom investigador não é quem é mais citado, não é quem tem mais trabalhos publicados e não é quem mais acerta nas suas hipóteses de investigação. Não se pode exigir à ciência que não erre. Pelo contrário, os sucessos da ciência resultam de insucessos.

HN- Considera que a investigação e a ciência são verdadeiramente reconhecidas no nosso país?

RG- Sim. Acho que cada vez mais o são. É claro que ainda há um longo caminho a percorrer. É preciso criar condições para se fazer investigação. Nos hospitais universitários, têm de ser criadas estruturas que apoiem de uma forma mais efetiva a investigação e os investigadores.

HN- A investigação deve ser premiada? Como?

RG- A investigação deve ser premiada, reconhecendo o mérito científico e académico dos investigadores e das entidades que tutelam a investigação. Considero que o reconhecimento deve ser feito através melhores condições para que as pessoas possam fazer cada vez mais investigação.

HN- Uma nota final

RG- Era muito importante, para os investigadores, para os titulares de informação e para as instituições, a existência de um sistema de certificação das fontes de informação. É isso que vai fazer com que a investigação seja transparente.

Entrevista de Vaishaly Camões

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