Lara Cunha: Enfermeira Especialista em Enfermagem Médico-cirúrgica; Research Fellow na Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra

A fragilidade emocional de quem leva as críticas “a peito”: saiba separar o profissional do pessoal

06/12/2024

Receber críticas no ambiente profissional, sejam através de relatórios escritos, projetos, apresentações ou avaliações de desempenho, pode gerar dúvidas em relação a nós próprios. Parece quase impossível não levar as críticas para o lado pessoal, já que muitos de nós tendem a vincular a nossa autoestima à nossa carreira.

Como doutoranda, encontro-me constantemente no limbo das críticas e julgamentos, desde os feedbacks sobre o meu estudo de investigação ou até nas avaliações da vertente de ensino. Por vezes, sinto que as críticas são dirigidas a mim pessoalmente, em vez do conteúdo do que escrevi ou à qualidade do meu trabalho.

Nesses momentos, procuro separar a minha autoimagem do que faço e de como os outros me percebem. O trabalho de Hannah Arendt, no livro “A Condição Humana” (1958), oferece uma perspetiva interessante perante este fenómeno. Arendt distingue entre “quem” somos e “o que” somos(1). Parafraseando: “No agir e no falar, os homens mostram quem são, revelam ativamente as suas identidades pessoais únicas e assim se manifestam no mundo humano (…) Esta revelação de ‘quem’, em contraposição ao ‘que’ alguém é – as suas qualidades, dons, talentos e defeitos, que ele pode mostrar ou esconder – está implícita em tudo o que alguém diz e faz.(2)”

Para Arendt, a nossa essência é sinónimo da unicidade de personalidades. Não obstante, descrever a personalidade de alguém é uma tarefa difícil. As palavras não conseguem capturar adequadamente o que nos torna únicos(2). Quando tentamos, Arendt argumenta que as palavras falham-nos e acabamos com uma descrição sumária do que alguém faz: as habilidades, traços de caráter e falhas. As nossas características (o que somos) não nos tornam únicos. O que diferencia um enfermeiro, que tem cabelos roxos e olhos azuis, que trata os doentes com gentileza e dá-se bem com os colegas de serviço, de outro enfermeiro com as mesmas características?

Arendt sugere que revelamos quem somos quando falamos e interagimos com os outros, e isso ocorre principalmente nos ambientes públicos. O que ela quer dizer é que nossa personalidade destaca-se através das nossas palavras e ações. A título de exemplo, o que torna um enfermeiro único é como demonstra compaixão e compreensão aos doentes de que está responsável, à sua maneira – algo que mais ninguém pode replicar. Se a nossa personalidade se destaca principalmente em público, podemos acreditar que nossa autoestima está nas mãos dos outros. No entanto, devemos lembrar que quem somos não é completamente determinado pelas opiniões alheias. Isso ocorre porque as descrições e avaliações do que fazemos nunca podem capturar completamente quem somos.

Na maioria das vezes, as críticas oferecem apenas uma avaliação do que fazemos. A distinção de Arendt entre quem somos e o que somos lembra-nos de não vincular a nossa autoestima às opiniões dos outros. Isto ajuda-nos a perceber que somos muito mais do que a avaliação do nosso trabalho por outra pessoa.

Quando Arendt afirma que a nossa essência está nas mãos dos outros, ela quer dizer que não podemos controlar o que os outros pensam de nós. Podemos fazer o nosso melhor para mostrar que somos gentis, tranquilos e bons no que fazemos. Podemos até tentar parecer de uma certa maneira ou persuadir os outros a mudarem de opinião sobre nós. No entanto, não podemos forçar os outros a perceber-nos como gostaríamos que eles nos percebessem.

Se revelar quem somos está fora do nosso controlo, por que continuamos a teimar provar a nossa qualidade/virtudes aos outros? Por que levar uma crítica para o lado pessoal quando não podemos necessariamente mudar a opinião de alguém sobre nós? Arendt argumenta que revelar a nossa personalidade única ainda vale a pena, mesmo que não haja garantia de que os outros nos vejam como nós nos vemos, ou de que possamos evitar completamente as críticas. Sem correr o risco de revelar a unicidade da nossa personalidade, perdemos a oportunidade de mostrar aos outros quem somos e do que somos capazes.

 

Referências Bibliográficas:

  1. Aguiar OA. Condição humana e educação em Hannah Arendt. Educação e Filosofia. 2008;22(44):23-42.
  2. Arendt H. The human condition: University of Chicago press; 2013.

 

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