Em entrevista exclusiva ao nosso jornal, o Professor Gil Faria, cirurgião especialista em Obesidade e Metabolismo e Coordenador dos Centros de Tratamento da Obesidade do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, alerta para o aumento alarmante da obesidade em Portugal, com 63% da população com excesso de peso e 24% obesa. Destaca a importância da cirurgia bariátrica, mas sublinha que apenas 1% dos doentes com indicação têm acesso a este tratamento, enfatizando a necessidade de estratégias preventivas abrangentes.
Healthnews (HN) – Como tem evoluído a prevalência da obesidade em Portugal nos últimos anos?
Professor Gil Faria (GF) – Tal como na maioria dos países ocidentais, as taxas de obesidade têm mantido uma tendência crescente. Em Portugal, estima-se em 63% a taxa de excesso de peso e em 24% a taxa de obesidade, sendo que a obesidade nas crianças e adolescentes ronda os 17%. São números assustadores e que praticamente duplicaram nas últimas duas décadas.
É importante percebermos que vivemos num ambiente que favorece a expressão da obesidade. Existe uma grande propensão genética para a obesidade se exprimir, mas o modo de vida ocidental, de uma forma global, favorece a prevalência e o desenvolvimento da doença. É muito redutor atribuirmos aos comportamentos individuais, das escolhas alimentares ao sedentarismo, esta evolução epidémica da obesidade e, portanto, como sociedade temos o dever de fazer mais e melhor para proteger e apoiar estes doentes.
HN – Que impacto teve o aumento das cirurgias bariátricas em ambulatório nas estratégias nacionais de combate à obesidade?
GF – Infelizmente, o tratamento cirúrgico da obesidade não é um método eficaz para controlar uma doença de base populacional. Estima-se que, a nível global, apenas 1% dos doentes com indicação para cirurgia consegue chegar a este tratamento. Em Portugal, não são conhecidos ao certo o número de cirurgias efetuadas, mas estima-se que ronde as 2.500 cirurgias/ano. Sabendo-se que cerca de 250.000 doentes têm indicação cirúrgica, podemos facilmente concluir que, ao ritmo atual, precisaríamos de 100 anos para controlar a obesidade, isto partindo do princípio de que não surgiriam mais novos casos. No Hospital de Pedro Hispano, começámos o programa de cirurgia bariátrica em ambulatório em abril de 2021, o que nos permitiu, a nível institucional, aumentar cerca de 30% a nossa capacidade de resposta. Infelizmente, isso corresponde apenas a uma gota no oceano dos doentes com obesidade. No entanto, o principal objetivo da ambulatorização da cirurgia da obesidade é aumentar a satisfação e a qualidade do tratamento oferecido aos nossos doentes; e essa meta tem sido cumprida de forma exemplar e com elevados índices de satisfação por parte dos intervencionados.
HN – Quais os principais avanços que contribuíram para a redução do tempo médio das cirurgias bariátricas?
GF – Acima de tudo, a experiência das equipas. O desenvolvimento da cirurgia por via laparoscópica nos últimos 30 anos, permitiu uma verdadeira revolução, diminuindo a agressividade dos gestos cirúrgicos e permitindo recuperações progressivamente mais rápidas. O desenvolvimento tecnológico de novos dispositivos de dissecção e sutura por via endoscópica permitiram também tornar a cirurgia mais rápida e mais segura, contribuindo para uma possibilidade de recuperação precoce dos doentes. A experiência acumulada ao longo dos anos no tratamento destes doentes, fez com que se verifique uma melhoraria na confiança por parte das equipas, assim como realizar cirurgias cada vez mais precisas e com menor risco de complicações.
HN – Como explicar a predominância de mulheres nas cirurgias bariátricas e que implicações tem para as políticas de saúde?
GF – Apesar da prevalência da obesidade não ser significativamente diferente entre os sexos, é verdade que são as mulheres quem mais procuram cuidados associados à obesidade. Na cirurgia, especificamente as mulheres, correspondem a cerca de 70-80% dos doentes tratados. Habitualmente, as mulheres procuram tratamento mais cedo, com graus menos avançados de obesidade e com menor carga de doença associada. Os doentes do sexo masculino, geralmente, procuram a cirurgia numa fase mais avançada da doença, após complicações das doenças associadas à obesidade (diabetes mal controlada, enfartes, etc.). De uma forma global, a “pressão social” para tratar a obesidade é mais forte nas mulheres. As preocupações com a estética e com a qualidade de vida são mais frequentes no sexo feminino e a obesidade, de uma forma global, é menos tolerada nas mulheres. Nos doentes do sexo masculino, continuamos a aceitar graus de obesidade que não toleramos socialmente nas mulheres. É importante realçar que a cirurgia da obesidade (cirurgia metabólica) é igualmente indicada para ambos os sexos e traz inequívocos benefícios de saúde e qualidade de vida para os doentes operados.
HN – Como está a ser gerido o acompanhamento a longo prazo dos pacientes submetidos a cirurgia bariátrica?
GF – Os doentes submetidos a cirurgia bariátrica são acompanhados no pré e pós-operatório por uma equipa multidisciplinar, para permitir o controlo de longo prazo da obesidade. A obesidade é uma doença crónica e progressiva e este acompanhamento é fundamental para garantir o sucesso das intervenções. Todos os doentes são acompanhados por médicos, cirurgiões, nutricionistas e psicólogos (ou psiquiatras), preferencialmente, a longo prazo. O seguimento preconizado pela Direção Geral de Saúde é de “apenas” três anos, que é o período em que surgem a maioria das complicações e é o tempo essencial para consolidar as necessárias alterações ao estilo de vida. A longo prazo, é necessário manter este comportamento, de forma a evitar a recidiva da obesidade. O seguimento e acompanhamento multidisciplinar, ao longo da vida, seria importante para garantir o apoio em casos de reincidência da obesidade, de recuperação de peso ou de retorno das doenças associadas à obesidade.
HN – Além da cirurgia, que outras estratégias estão a ser implementadas em Portugal para prevenir a obesidade, especialmente em jovens?
GF – A obesidade é uma doença extraordinariamente complexa e difícil de tratar depois de instalada. A prevenção será muito importante para conseguirmos controlar esta doença a nível populacional. A promoção de estilos de vida saudável, da prática de exercício físico, o apoio ao desporto escolar, o regresso à dieta mediterrânica serão fatores importantes. Mas também sabemos que a obesidade é inversamente proporcional ao desenvolvimento socioeconómico. Pessoas mais vulneráveis nesta esfera têm maiores taxas de obesidade: a literacia é um componente importante, mas também o acesso a alimentos saudáveis, a disponibilidade física e mental para a atividade desportiva, os hábitos de sono e a saúde mental contribuem para o desenvolvimento desta doença. É, portanto, fundamental que a sociedade seja mais próspera e mais educada. Também fatores aparentemente não relacionados contribuem para estes números. Por exemplo, o planeamento urbano. Se vivemos em cidades onde não conseguimos andar a pé ou de bicicleta, não estamos a promover atividade física. Tem-se dado alguma relevância à promoção da alimentação saudável (embora continue a ser necessário um esforço adicional), mas temos descurado muito a qualidade de vida e a promoção de atividade física. Temos todos de nos educar um pouco mais sobre esta doença, parar com os preconceitos individuais, com a culpabilização dos doentes e com os estereótipos de gula e preguiça e trabalhar para promover um estilo de vida mais saudável para todos.
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