A transição para um modelo nacional de Unidades Locais de Saúde (ULS) trouxe subjacente a ideia não só de integração de cuidados mas também a de facilitar a captação (e manutenção) de recursos humanos. As assimetrias do SNS, com algumas áreas geográficas com maior capacidade de fixação de profissionais e melhor acesso à saúde das populações são outro dos motivos prováveis da decisão de reforma iniciada.
Existem objectivamente também contrastes entre cuidados hospitalares e cuidados de saúde primários (CSP): a prestação de cuidados de forma mais flexível e toda a complexidade de deslocações e intervenções na comunidade no caso das Unidades de Saúde Pública, Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados e Unidades de Cuidados na Comunidade, assim como a autonomia na organização das Unidades de Saúde Familiar (USF), fator aliás fundamental para o seu sucesso. A incompreensão das respectivas rotinas, denominado por vezes de “hospitalocentrismo”, tem levado a um processo nacional de integração nas ULS com alguma tensão, atritos e insatisfação, com manifestações mais ou menos públicas nesse sentido.
Não existe uma percepção globalmente favorável por parte dos CSP da transição ULS que, subestimada, colocará em causa a consolidação dos ganhos dos últimos anos e disponibilidade dos recursos humanos para esforços adicionais, redundando em desistências mais ou menos silenciosas, geradoras de problemas e que limitam a motivação e envolvimento destas equipas.
Adicional e independentemente de alterações consolidadas e relevantes na carreira médica, solicitadas pelos sindicatos médicos, a nível nacional, a gestão de recursos humanos nas ULS é uma área particularmente heterogénea e delicada, onde os procedimentos podem ser mais ou menos penalizadores (por vezes “in dubio contra operario“) e criadores de assimetrias, diga-se injustiças, muito importantes entre as 39 ULS.
Deve existir também um efectivo benchmarking de aspectos relacionados com a gestão de recursos humanos na totalidade das ULS em parâmetros como o absentismo, que deve contribuir efectivamente para a avaliação do desempenho e como parte de uma estratégia de prevenção quinquenária.
Continuando o foco na questão extra-hospitalar, embora a promoção da saúde e a prevenção da doença, nomeadamente a primária, sejam frequentemente verbalizadas como centrais nesta transição, o investimento real nessas áreas não será fácil. Existe a percepção de um sistema focado na realização de atos assistenciais, sobretudo hospitalares, o que pode canibalizar recursos dos CSP, por desvalorização de iniciativas de saúde comunitária e preventiva, incluindo agenda dedicada à consulta programada.
Incentivos mal desenhados, recentemente mitigados através de negociações sindicais, como aqueles que penalizavam excessivamente a prescrição de medicamentos e exames, devem ser corrigidos. O desenho de índices de desempenho que favorecem atividade assistencial de agudos em detrimento marcado do controle de doentes crónicos é mais um sinal contraditório.
A falta de reconhecimento e a falta de flexibilidade nas atividades supracitadas irão dificultar ganhos em saúde e redução a médio prazo de carga nas urgências e internamentos. Neste ponto refiram-se as possíveis vantagens do recente projecto da Estratificação de Risco, liderado pela ACSS mas ao qual devem estar associados os devidos incentivos nas áreas da promoção da saúde e prevenção da doença
Na Saúde Pública, a Direção Geral de Saúde e toda a estrutura dependente, depara-se com outro problema: a continuidade de colaborações em programas regionais e nacionais dos profissionais de saúde pública. Existem responsabilidades que ultrapassam as ULS mas que são executadas pelos seus profissionais, criando um sistema multinível que, se não for devidamente enquadrado, pode penalizar várias atividades de saúde pública. Vários profissionais continuam a assegurar o que é necessário mas é compreensível que as ULS perguntem que contrapartidas lhes são conferidas pela cedência de profissionais para atribuições que são para além do domínio geográfico respectivo.
A ausência deste enquadramento pode colocar em causa não só as responsabilidades nacionais e regulamentares internacionais, mas também agravar desafios locais das ULS. A própria satisfação dos profissionais nestas colaborações é um ponto a considerar. Um ponto crítico associado a resolver é a orgânica dos Serviços de Saúde Pública, sem a qual os respectivos profissionais também não poderão contribuir da forma mais efetiva, ficando, por isso, os benefícios por colher da sua especialização, em apoio a múltiplas ULS.
A transição para o modelo ULS trouxe uma miríade de desafios aos Conselhos de Administração, particularmente no que diz respeito à gestão de novas despesas. Muitas delas não estavam previstas, colocando uma pressão adicional sobre as administrações no meio de uma transição já de si complexa. Foram várias as situações relatadas de heranças imprevistas na extinção das Administrações Regionais de Saúde. Um dos problemas mais relatados é a questão dos transportes. De forma generalizada no país, para vários tipos de actividades, mas nomeadamente, uma vez mais, com maior foco em visitas domiciliárias, actividades comunitárias e no foro das funções de programas de vigilância da Saúde Pública, com os quais os hospitais não estariam familiarizados.
Um dos maiores riscos que o SNS enfrenta é mesmo a não correção dos orçamentos das ULS. Se não houver um ajuste das insuficiências financeiras e de implementação identificadas, especialmente em áreas como rastreios, vacinação, medicação, dispositivos, transportes, as ULS poderão sofrer adicionalmente com duodécimos, limitando a sua capacidade de resposta e inovação. Esta situação ameaça não só a continuidade dos serviços como também a qualidade dos cuidados prestados. A salvaguarda de missões extra-área de referência, com a devida salvaguarda financeira das ULS deve também ser identificada como prioridade, sob risco de bloqueios e prejuízos para a saúde populacional. Um exemplo urgente é o funcionamento das Unidades Móveis de Radiologia, fulcrais no rastreio de tuberculose, nomeadamente nos estabelecimentos prisionais.
Em antecâmara de Orçamento de Estado e em véspera de um novo ano civil, é incerto o que se vai passar com o panorama nacional das ULS. Existem Comissões e Grupos de Trabalho em funções, como a Comissão Técnica Independente nomeada no despacho n.º 10677/2024, que poderão mudar, pelo menos parcialmente, o contexto organizacional. No entanto, independentemente desse trabalho, há uma necessidade de desenhar incentivos a nível nacional para que a dita integração de cuidados, usada extensivamente como justificação da generalização do modelo, não seja apenas uma miragem e que não triunfe uma certa desilusão, mais ou menos expressiva, de toda a rede previamente não incluída no domínio hospitalar estrito. Sem maior identificação dos CSP com esta transição, nem correcção de desequilíbrios de atribuições na mesma, não há lugar para grande optimismo. Ficam os avisos.
Sou um dos profissionais dos CSP e subscrevo integralmente aquilo que aqui é explanado pelo meu colega de saúde pública Dr. Bernardo Gomes