O Professor André Peralta, Subdiretor Geral da Saúde, proferiu um discurso abrangente e esclarecedor sobre as reformas necessárias na saúde pública, tanto a nível nacional como europeu, no contexto pós-pandemia de COVID-19. A sua intervenção ocorreu no âmbito da 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde, uma iniciativa da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar.
Peralta iniciou a sua apresentação enfatizando a importância de dinamizar a sociedade civil e as forças vivas da comunidade, reconhecendo o papel fundamental da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar neste processo. Sublinhou que o objetivo principal é promover e dar voz às comunidades saudáveis, controlando simultaneamente o que está sob controlo. Neste contexto, o orador destacou uma máxima importante não só para a medicina, mas também para a saúde pública: “não estragar é sempre uma boa máxima”.
A primeira mensagem-chave transmitida por Peralta foi que as reformas na saúde pública só são possíveis nas margens. Reconhecendo que esta afirmação poderia desiludir aqueles que esperavam uma abordagem mais revolucionária, o Subdiretor Geral da Saúde explicou que as mudanças significativas ocorrem de forma gradual e incremental.
Prosseguindo com a sua segunda reflexão, Peralta abordou a questão de quando se deve reformar. Para ilustrar este ponto, citou uma frase de Ricardo Jorge, datada de 1899: “Só o aguilhão das epidemias nos força a uma reforma sanitária”. O orador convidou a audiência a refletir sobre o período histórico português do final do século XIX e início do século XX, caracterizado por grandes mudanças sociais e evolução na medicina.
Peralta explicou que desde 1880 se pensava em realizar uma reforma da saúde pública em Portugal. No entanto, foi o evento da Peste do Porto que desencadeou efetivamente a reforma, levando à criação da Direção-Geral da Saúde e do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA). Esta reforma estabeleceu as bases para o desenvolvimento da saúde pública nas cinco décadas seguintes. Em 1901, o governo de Hintze Ribeiro criou o Regulamento Geral dos Serviços de Saúde Pública, logo após a crise de saúde pública.
O orador enfatizou que é crucial considerar o tempo e a oportunidade que uma crise proporciona para implementar reformas. Alertou que, atualmente, as reformas em Portugal não devem ser analisadas apenas no contexto nacional, mas também no âmbito da União Europeia. Peralta observou que a própria União Europeia se reforma a cada crise, adaptando-se às novas realidades e desafios.
Para ilustrar este ponto, o Subdiretor Geral da Saúde relembrou a crise das “vacas loucas”, que levou à criação da DG SANTE, o organismo dentro da União Europeia responsável pelas competências na área da saúde animal e humana. Esta crise evidenciou que a UE não possuía mecanismos suficientes para responder a uma crise de saúde pública de grande escala.
Posteriormente, a crise do SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) em 2003 levou à criação do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), mais uma vez reconhecendo a necessidade de ferramentas mais robustas para lidar com crises de saúde pública. Mais recentemente, a pandemia de COVID-19 resultou na criação de uma nova agência, a HERA (Autoridade Europeia de Preparação e Resposta a Emergências Sanitárias), demonstrando que a UE continua a adaptar-se e a reforçar a sua capacidade de resposta a crises sanitárias.
Peralta salientou que a União Europeia ainda se encontra num nível de maturidade em que os objetivos para a saúde se concentram principalmente na proteção da saúde. No entanto, prevê que, com o aprofundamento da integração europeia, os poderes delegados à UE nesta área serão reforçados, possivelmente incluindo uma prestação de cuidados mais robusta para os cidadãos europeus.
O orador passou então a explorar o impacto da crise na reforma da saúde pública a nível europeu. Destacou o Regulamento das Ameaças Transfronteiriças, um instrumento jurídico que define o que constitui uma ameaça transfronteiriça para a União Europeia. Este regulamento não se limita apenas a doenças infeciosas, mas abrange também ameaças químicas, ambientais e até desconhecidas.
Peralta explicou que este regulamento tem um impacto significativo na saúde pública portuguesa, nomeadamente através do reforço do Comité de Segurança da Saúde, um fórum que reúne todas as entidades com competências na proteção da saúde. Este comité tem agora poderes reforçados para agir em situações de crises sanitárias, podendo inclusive enviar equipas de profissionais altamente treinados para lidar com crises em países específicos.
Outro aspeto importante do regulamento é a obrigatoriedade de todos os países terem um plano de preparação e resposta a epidemias ou crises de saúde. Estes planos serão avaliados, e Portugal está atualmente a trabalhar no seu plano, principalmente através da Direção-Geral da Saúde. Peralta anunciou que, no próximo ano, Portugal receberá uma delegação da Comissão Europeia para avaliar o seu plano de preparação e resposta.
O Subdiretor Geral da Saúde salientou que este processo de avaliação é, em si mesmo, um mecanismo de preparação para o país. Durante uma semana, o país é avaliado, o que permite reunir à mesma mesa diversas entidades, como o Ministério da Saúde, o Ministério das Finanças e outras instituições que estiveram envolvidas na tomada de decisões durante a pandemia. Este exercício ajuda a manter os mecanismos de resposta “oleados” mesmo fora dos períodos de crise.
Peralta mencionou ainda outro mecanismo importante introduzido pela UE: o “Joint Procurement of Medical Countermeasures”. Este instrumento permite que a União Europeia compre medicamentos e vacinas em conjunto, funcionando como um mecanismo de proteção e um seguro para situações de crise. Em caso de epidemia, este mecanismo garante o acesso a medicamentos e vacinas essenciais.
O orador enfatizou que a principal mensagem a reter é que a reforma da saúde pública a nível europeu está a acontecer diante dos nossos olhos. Embora a União Europeia tenha dificuldades em comunicar eficazmente com os seus Estados-Membros e cidadãos, as mudanças estão em curso e são significativas.
Voltando-se para a realidade portuguesa, Peralta reconheceu que a crise da COVID-19 foi provavelmente a maior crise dos últimos 100 anos, causando um enorme stress no sistema de saúde, não apenas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas em todo o sistema. A recuperação está a ser mais longa do que o esperado, com o país ainda a observar as ondas de choque do que aconteceu durante a pandemia.
Os hospitais e os cuidados de saúde tiveram que se reorganizar, o que resultou em aumentos das listas de espera e cuidados de saúde que não foram satisfeitos. A esta recuperação junta-se uma crise nas forças de trabalho, um problema comum em toda a Europa. Os sistemas de saúde têm dificuldade em responder às necessidades das pessoas a quem prestam serviços, uma situação transversal a toda a Europa.
Peralta argumentou que, para compreender a reforma no contexto português, é necessário ter em conta este contexto social e a capacidade da administração pública para implementar estas reformas. Ele identificou a transformação em Unidades Locais de Saúde (ULS) como provavelmente a maior reforma pós-COVID em Portugal.
Embora não tenha querido discutir em profundidade os méritos ou deméritos desta reforma, Peralta sugeriu que ela ficará na história como uma resposta à crise da COVID-19. Esta transformação em ULS foi descrita como um “gatilho” que desencadeou uma série de mudanças no sistema de saúde português.
Uma das consequências desta transformação é o mecanismo de extinção das Administrações Regionais de Saúde (ARS) e as alterações que essa extinção traz para diversos organismos do Ministério da Saúde. Entre estas mudanças, destaca-se a criação da Direção Executiva do SNS, que sucede às ARS, mas com novas competências.
Na Direção-Geral da Saúde, também ocorreram alterações na área da saúde pública. Os departamentos de saúde pública que estavam nas ARS passaram a ser delegações da Direção-Geral da Saúde. Peralta sublinhou a importância de acompanhar o que irá acontecer à saúde pública a nível local, integrada nas ULS, considerando este um capítulo ainda por escrever.
O orador observou que, apesar do figurino legal ser o mesmo para todas as ULS, na prática existe muita heterogeneidade no dia-a-dia e na forma como operam. Ele prevê que esta heterogeneidade a nível local se manterá, mas considera que é um aspeto da reforma da saúde pública que ainda está por definir completamente.
Passando a refletir sobre a Direção-Geral da Saúde, Peralta lembrou que a instituição celebra este ano 125 anos de existência. Nascida após a crise de saúde de 1899 no Porto, a DGS teve muitas “roupagens” ao longo deste período. Com a extinção das ARS, a DGS prepara-se para uma nova lei orgânica que lhe permitirá ter uma nova “roupagem”.
Peralta partilhou então o que considera serem os eixos para os quais a DGS deve orientar-se no futuro:
Proteção da saúde: Este eixo foca-se em como responder a emergências de saúde e proteger a população. Isso implica melhorar os sistemas de alerta e treinar uma força de trabalho capaz de responder a desafios não só portugueses, mas também europeus, uma vez que Portugal pode ser chamado a apoiar outros países em crises de saúde.
Programas de saúde ao longo do ciclo de vida: Aqui, Peralta identificou um grande desafio, que é português mas também global. Atualmente, existem programas muito verticalizados (diabetes, doenças vasculares, oncológicas, etc.). É necessário pensar em mecanismos de articulação entre estes diversos programas, considerando a multimorbilidade dos pacientes e incorporando as experiências dos utentes.
Promoção da saúde e ambientes saudáveis: Neste eixo, Peralta destacou o desafio de repensar a saúde materna e infantil. Elogiou a digitalização do boletim de saúde da grávida e do boletim de saúde infantil, considerando-a uma boa notícia. No entanto, reconheceu que algumas pessoas podem sentir falta do aspeto físico e sentimental do boletim tradicional.
Qualidade em saúde e aspeto normativo: Peralta sublinhou que este é um aspeto fundamental para a Direção-Geral da Saúde, mas que precisa de ser modernizado na forma como se comunica com quem usa as normas. É necessário pensar que normas têm mais impacto para os utentes.
Apoio estratégico à Direção-Geral da Saúde: Atualmente, o único apoio formalizado é a Comissão Técnica de Vacinação. Peralta defendeu que é necessário expandir este modelo, com mais aconselhamento técnico para outros temas cada vez mais complexos, como as emergências em saúde pública e o poder da autoridade de saúde.
Para concluir, Peralta resumiu as suas cinco mensagens principais:
- Não é possível reformar sendo revolucionário. As reformas são possíveis nas margens.
- Devemos reformar nos períodos após as crises. Estamos ainda num momento pós-COVID-19 e devemos aproveitar para reformar as nossas instituições e instrumentos.
- A reforma europeia está em andamento. Quando olhamos para a reforma da saúde pública, não podemos pensar apenas em Portugal, temos de considerar a componente europeia.
- A reforma das ULS será provavelmente o marco histórico que ficará do pós-COVID-19 em Portugal, e foi o gatilho para repensar a própria Direção-Geral da Saúde.
- É importante documentar e escrever sobre as reformas em curso, para que as próximas gerações possam aprender com os sucessos e insucessos do passado.
Peralta terminou citando o Professor Constantino Sakellarides, que observa que quem escreve livros sobre política de saúde normalmente não está envolvido na prática de fazer essas políticas, e quem está envolvido na ação não tem tempo para escrever livros. Considerando Sakellarides uma exceção a esta regra, Peralta deixou um apelo à audiência para que se envolvam na reforma da saúde pública, seja a nível nacional, regional ou local, e que escrevam sobre estas reformas. Só assim, argumentou, será possível documentar adequadamente este processo e permitir que as futuras gerações aprendam com as experiências do presente.
HealthNews
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