André Biscaia critica modelos falhados no SNS: “não se pode fazer integração de cuidados por decreto”

03/31/2025
Em entrevista exclusiva ao Healthnews, realizada à margem do 42.º Encontro Nacional de Medicina Geral e Familiar, que decorreu por estes dias em Tróia, André Biscaia, Presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), partilha a sua visão sobre os desafios e oportunidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS)

Healthnews (HN) – Como garantir a sustentabilidade financeira dos novos modelos organizacionais, como as Unidades Locais de Saúde (ULS)?

André Biscaia (AB) – A integração das Unidades Locais de Saúde (ULS) no SNS foi uma reforma com impacto estrutural e funcional, decidida sem ter sustentação na evidência e sem ter aprendido nada com 20 anos de ULS anteriores. O golpe final foi a falta de preparação em termos de recursos e instrumentos de gestão e desenvolvimento. Esta implementação precipitada trouxe dificuldades significativas.

Diz-se agora que o modelo é irreversível e que só são possíveis medidas de mitigação dos problemas identificados. Uma das prioridades passa por devolver relevância aos cuidados de saúde primários, que perderam quase tudo neste modelo organizacional. Para tal, é necessária a criação de estruturas dedicadas à gestão e acompanhamento destes cuidados. E também de um nível específico dentro das ULS para reforçar os cuidados de saúde primários, com equipas de gestão dedicadas e orçamentos blindados que garantam autonomia e eficácia.

HN – Qual é o papel da colaboração interprofissional na otimização dos cuidados?

AB – A colaboração interprofissional tem sido um ponto crítico nos modelos alternativos de cuidados. Apesar dos avanços em algumas Unidades de Saúde Familiar (USF) e Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC), o progresso tem sido fragmentado e pouco integrado.

A meu ver, o caminho passa por uma contratualização que promova verdadeiramente a integração dos cuidados. Não basta legislar ou impor mudanças por decreto; é necessário fomentar relações interprofissionais, entre unidades e, igualmente, intersectoriais sólidas e sustentáveis.

Modelos anteriores falharam por desconsiderarem evidências acumuladas ao longo de décadas. A aposta deve ser em abordagens que incentivem equipas multidisciplinares a trabalhar em conjunto, alinhando objetivos estratégicos com as necessidades reais no terreno.

HN – Os enquadramentos organizacionais atuais correspondem às expectativas dos utentes?

AB – Desde 2005, a reforma dos cuidados de saúde primários trouxe melhorias significativas nos indicadores de saúde em Portugal. O país registou menos internamentos evitáveis, menos mortes tratáveis (as que dependem mais diretamente de cuidados de saúde) e uma esperança de vida superior ao esperado para as condições socioeconómicas nacionais.

No entanto, para continuar a responder às expectativas e necessidades das pessoas, é essencial investir nos recursos humanos. Seria importante que as equipas multidisciplinares das USF incluíssem assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, optometristas e terapeutas ocupacionais. Além disso, um alinhamento eficaz entre organismos centrais e locais é fundamental para alcançar os objetivos estratégicos do SNS.

HN – Como é que o modelo português se compara a outros sistemas internacionais?

AB – O modelo português inspirou-se em sistemas como o inglês e escandinavo, mas foi adaptado à realidade cultural e económica do país. O sucesso do SNS reside precisamente na sua capacidade de aprender com experiências externas sem as replicar diretamente, fazendo um modelo português.

Portugal construiu um serviço nacional de saúde (SNS) adequado às necessidades portuguesas e recursos disponíveis, o que explica os resultados positivos alcançados até agora. Contudo, para manter este percurso bem-sucedido, é necessário continuar a ajustar o modelo às novas exigências sociais e demográficas, apostando verdadeiramente no SNS. O SNS está em perigo de se desestruturar!

HN/Antónia Lisboa

 

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