HealthNews (HN) -Como interpreta o significado do Dia Mundial da Saúde, enquanto médico e presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação?
Renato Nunes (RN) – A comemoração do Dia Mundial da Saúde é uma forma de informar e sensibilizar a população de todo o mundo para as questões da saúde nas suas diferentes vertentes e áreas. A Medicina Física e de Reabilitação (MFR), enquanto especialidade médica e área da saúde, atribui a este evento um significado especial que se relaciona com a promoção do bem-estar e da qualidade de vida das pessoas, intervindo nas consequências da doença que comprometem a autonomia e a funcionalidade.
Como médico fisiatra e presidente da SPMFR considero que este dia é uma oportunidade para destacar a importância da Reabilitação nos cuidados de saúde, em todas as fases da doença e nas diferentes tipologias de cuidados, assumindo-se como área que faz a gestão da transição do hospital para a comunidade e acompanha os problemas da vida após a doença. É importante realçar a necessidade de uma reabilitação precoce e integral e a relevância da continuidade dos cuidados, promovendo a participação ativa e a vida com qualidade.
HN -O tema deste ano é – “Inícios Saudáveis, Futuros Cheios de Esperança” como se relaciona com o papel da reabilitação médica?
(RN) – Este tema remete para a promoção da saúde, a prevenção da doença e a intervenção nas consequências da doença ao longo da vida. A reabilitação médica participa em todas estas vertentes dos cuidados de saúde, centrando os cuidados no indivíduo e privilegiando uma abordagem mais abrangente e holística que se revê no modelo biopsicossocial, em que a intervenção é dirigida às alterações que resultam da doença, ao nível das estruturas e funções do organismo, ao nível da capacidade funcional para realizar tarefas e atividades da vida diária e, num plano mais social, familiar e comunitário, ao nível da capacidade para uma participação mais ativa.
A terminologia da International Classification of Functioning, Disability and Health, da Organização Mundial de Saúde (OMS) realça esse carácter positivo com que a reabilitação lida com as limitações, promovendo a atividade e a participação, e focando-se na motivação e capacitação para alcançar os objetivos que são mais relevantes para a vida de cada um.
HN -A reabilitação é muitas vezes vista como uma fase final do tratamento. Qual é, na verdade, o seu papel na recuperação e na qualidade de vida dos doentes?
(RN) – A reabilitação deve estar na primeira linha dos cuidados de saúde e, desta forma, estar presente desde o primeiro dia e acompanhar o doente ao longo do seu processo de recuperação, o que para alguns significa ao longo da vida. A Reabilitação caracteriza-se pelo trabalho em equipa multiprofissional, organizada e integrada segundo objetivos definidos, e pela articulação interdisciplinar com as diferentes áreas do saber médico, devendo por isso estar presente em todas as tipologias, desde os hospitais de agudos até à comunidade, integrando um verdadeiro contínuo de cuidados.
A intervenção da Reabilitação deve abordar de forma integral e articulada todas as consequências da doença promovendo a sua recuperação, restituição, compensação e substituição, reduzindo e controlando as limitações e incapacidades e facilitando uma maior funcionalidade e competência para retomar os vários papéis da vida na sociedade. Todo este processo ajuda o doente a alcançar o seu máximo potencial, de acordo com as suas expetativas, vontades e objetivos de vida, contribuído assim para níveis mais elevados de bem-estar, satisfação e qualidade de vida.
HN -Em que patologias a intervenção da Medicina Física e de Reabilitação tem um impacto mais relevante?
(RN) – A MFR pode intervir em qualquer patologia e tratar qualquer alteração que resulte da doença em diferentes áreas como as funções cognitivas, motoras, a comunicação, a deglutição, a dor e as alterações vesico-esfincterianas. A procura de cuidados de reabilitação tem sido crescente nos últimos anos, devido a vários fatores como o aumento da esperança média de vida com consequentes comorbilidades associadas, frequentemente incapacitantes; melhoria dos cuidados assistenciais que permitem salvar vidas, mas condicionando limitações ou incapacidades em idades cada vez mais jovens; e maior exigência em relação à qualidade de vida e participação.
O Plano Nacional de Saúde (PNS) 2021-2030 realça a prevalência das doenças cardiorrespiratórias, neurológicas e músculo-esqueléticas, que pelo seu potencial de cronicidade aumentam a necessidade de cuidados de saúde. A reabilitação deve atuar de forma transversal e equilibrada em todas as doenças e fases da doença, não devendo reservar-se apenas para as situações de maior gravidade e complexidade, nem focar-se apenas na fase crónica das diferentes patologias.
HN -Que evidência existe sobre os benefícios da reabilitação precoce?
(RN) – O planeamento de cuidados de reabilitação deve ser orientado segundo normas baseadas em evidência científica que abranjam toda a cadeia de cuidados e que devem estar alinhados com as recomendações e guidelines internacionais, que recomendam para muitas patologias que a intervenção seja o mais precoce possível, segundo a condição clínica do doente.
Está demonstrado o custo-efetividade da reabilitação na redução da despesa geral em cuidados de saúde, com diminuição do tempo de internamento hospitalar, das complicações e sequelas, da necessidade permanente de cuidados, contribuindo para uma plena reintegração na sociedade, incluindo a atividade laboral.
HN -Como avalia a atual resposta dos serviços de reabilitação em Portugal? Quais são os principais desafios?
(RN) – A organização dos serviços de reabilitação e a constituição das equipas está documentada na “Rede Nacional de Especialidade Hospitalar e de Referenciação – Medicina Física e de Reabilitação”, publicado pela ACSS em 2017. Na realidade atual da organização dos cuidados de reabilitação no sistema de saúde português, apesar de existir uma centralização de cuidados a nível hospitalar, as tipologias de cuidados encontram-se organizadas segundo o modelo preconizado pela OMS, dividindo-se em Serviços Hospitalares, Centros Especializados, Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e Cuidados de Saúde Primários, considerando ainda o Setor Convencionado e a articulação entre instituições públicas e os Setores Social e Privado. Em todos estes elementos da rede nacional de reabilitação médica trabalha-se com equipas de reabilitação em modelo multidisciplinar e/ou multiprofissional, em que o médico fisiatra assume a coordenação e responsabilidade médico-legal pelos programas de reabilitação, e se articula com outras especialidades médicas e com outras profissões de saúde.
Estão identificadas insuficiências nas estruturas e equipamentos, na constituição das equipas, na transição de cuidados e no acesso aos cuidados, nomeadamente nos Cuidados de Saúde Primários e na reabilitação de base comunitária. Assim, constituem desafios para o futuro: orientar a resposta às necessidades da população, garantir a equidade de acesso aos cuidados, garantir a presença em todos os níveis de cuidados, de forma integrada, considerando que a continuidade é fundamental para a obtenção de ganhos em saúde.
HN -Existem desigualdades regionais no acesso à reabilitação?
(RN) – A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência inclui o direito à reabilitação. A cobertura universal de saúde implica que todas as pessoas tenham acesso, sem discriminação, aos serviços de saúde necessários para o tratamento, a promoção, a prevenção, a reabilitação e os cuidados paliativos. Segundo o PNS, a extensão da cobertura de cuidados de saúde em Portugal, em 2019, estimada em 61%, encontra-se abaixo da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) (74%), sendo especialmente baixa nos cuidados médicos em ambulatório, incluindo neste nível os cuidados de reabilitação.
Em Portugal identificam-se desigualdades regionais no acesso à reabilitação em diferentes níveis: reduzida referenciação para cuidados de reabilitação por parte dos médicos; dificuldade na gestão da alta e continuidade de cuidados; carência de infraestruturas e recursos humanos em áreas geográficas específicas como por exemplo as áreas do interior das Regiões Norte e Centro; elevado tempo de espera para consultas de MFR e programas de reabilitação; elevado tempo de espera para internamento de reabilitação em centro especializado; e dificuldade na gestão de doentes prioritários.
A OMS defende que a reabilitação deve ser alargada a todos os níveis de saúde, assegurando a disponibilidade e acessibilidade a cuidados de reabilitação atempados, acessíveis e utilizáveis por pessoas com incapacidade, e desenvolver estratégias baseadas na comunidade, que permitam que a reabilitação chegue a zonas remotas e de difícil acesso.
HN -Esta área tem sido valorizada nas políticas públicas de saúde? O que falta fazer?
(RN) – No documento da OMS “Strengthening Rehabilitation in Health Systems” (EB152/10), de 2023, é reforçada a necessidade de uma estratégia para melhoria dos cuidados de reabilitação e que pressupõe a implementação de políticas de saúde, que envolvam toda a cadeia de cuidados, desde a promoção da saúde e prevenção primária até à vida com uma participação ativa na sociedade, estruturando o seu carácter transversal e integrador.
O acesso à reabilitação constitui um direito humano fundamental, que é consagrado pela Carta das Nações Unidas e pela resolução da Assembleia Mundial da Saúde de 2005, o que impõe a definição de políticas de saúde que promovam a organização dos serviços de saúde de forma a que os cuidados de reabilitação sejam integrados.
As políticas de saúde em Portugal não têm acompanhado a evolução das necessidades e dos desafios que hoje se colocam aos doentes e profissionais em termos de cuidados de reabilitação. A implementação de um Plano Nacional de Reabilitação é uma prioridade de saúde pública, pelos objetivos de qualidade que o País assume enquanto estado membro da União Europeia (EU). A estratégia nacional de organização dos cuidados de reabilitação que deve contemplar a implementação de medidas de desenvolvimento assistencial, incluindo a constituição de equipas multiprofissionais de reabilitação com todas as valências em todas as tipologias de cuidados, bem como a adequada transição e continuidade, considerando as especificidades regionais.
HN -Como pode a reabilitação ser melhor integrada no SNS e nos planos nacionais de saúde?
(RN) – A OMS recomenda aos Estados Membros a necessidade de implementação de várias medidas que reforçam a organização dos cuidados de Reabilitação nos sistemas de saúde, sensibilizando o compromisso nacional para com a reabilitação, reforçando o planeamento da reabilitação, integrando esta área nos planos e políticas nacionais de saúde, com adequação dos mecanismos de financiamento dos serviços de reabilitação.
Em julho de 2024, a Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação apresentou ao Ministério da Saúde o “Plano nacional de Reabilitação”, um documento estratégico nacional de organização dos cuidados de reabilitação e que inclui medidas e soluções enquadradas nas seguintes áreas de intervenção: 1) Acesso aos cuidados de reabilitação; 2) Instalações e recursos humanos; 3) Transição e continuidade de cuidados; 4) Integração, participação, promoção da saúde e vida na comunidade.
Acreditamos que este é o momento para se discutir este plano e assegurar que a Reabilitação, enquanto um conjunto de intervenções concebidas para otimizar a funcionalidade de indivíduos com problemas de saúde ou incapacidades, em interação com o seu ambiente, seja reconhecida como uma estratégia essencial para alcançar a cobertura universal de saúde, melhorar a saúde e o bem-estar, melhorar a qualidade de vida, adiar a necessidade de cuidados de longa duração e capacitar as pessoas para atingirem o seu pleno potencial e participarem ativamente na sociedade.
Dr. Renato Nunes
Médico Fisiatra e Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação
HN/entrevista de Antónia Lisboa
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