Mário Dinis Ribeiro Assistente Graduado Sénior de Gastrenterologia IPO Porto Professor Catedrático Convidado, FMUP

Os heróis (imperfeitos) e a sustentabilidade ao serviço dos doentes

04/22/2025

Sou feliz e sou médico em Portugal. Aceitei o desafio de integrar uma lista à Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, a favor de transmitir que é possível ser médico em Portugal, na sua total plenitude técnica, científica e dirigente, de forma autónoma, livre e … de forma independente!

No dia 16.4 pude rever ex-alunos, colegas e mestres… com vários estando entre os “meus heróis” e fazendo parte de algo que faz sentido! Chamo “os meus heróis”, às várias referências, mais velhos e mais novos, que sempre me incutiram ou exigiram dois princípios – ser autónomo e transparente. E por outro lado, tal foi concretizável dentro de uma “estrutura”, um padrão, que ainda que imperfeita era tangível e existente. Penso que se tal não acontecer, o que podemos antecipar é que tudo se tornará mais difícil, menos sustentável.  Hoje, uma narrativa diferente serve-se de um caldinho de confusão, de uma quase caótica ausência de valores e lideranças para a criação de narrativas e (aparente necessidade) de respostas avulsas e porventura não servindo em última instância o interesse maior – dos doentes.

 Autonomia e transparência: Em “O Monge e o Executivo”, James C. Hunter estabelece, em torno do conceito de liderança, a diferença entre poder e autoridade. O poder, atribuído por meio de um cargo ou imposição e a autoridade, vinda da confiança e respeito. Eu acrescento que aquele, o poder, é muitas vezes pouco claro e pouco explícito e por isso frágil, pouco sustentável se o não for pelo medo. Tive a sorte de ter tido várias influências que me transmitiram uma ideia clara que é permitido questionar a “eminência” e “conquistar” a possibilidade de fazer, escrever, sonhar, mudar. Tive o sonho de fazer fazer e observo agora os outrora meus alunos ou internos, a serem “heróis com autoridade”.

E o que pode a Ordem fazer em relação a isto? Bem, pode fomentar duas linhas de pensamento. Que existem e sempre existirão diferentes gerações a trabalhar em conjunto mas que tal é saudável e desejável. Que às mais novas, aos internos e “jovens” especialistas, que lhes seja possível questionar e ser acarinhadas no seu crescimento, clínico e científico, muitas vezes (quase sempre), cheios de dúvidas e sofrimento porque também é nessa fase que finalmente se completam como pessoas ao nível pessoal e familiar mas num mundo em mudança serão sempre por definição os primeiros a perceber algumas e “ser alvo” de outras… E por isso, compete aos dirigentes apoiar, tutorar, servirem de “heróis” (imperfeitos)!  E, a estes, aos futuros e atuais dirigentes, a Ordem deve também, favorecer, contribuir para a real evolução, vulgarmente confundida com carreiras, mas que pode passar por acréscimo contínuo de competências, que são necessariamente desconhecidas, mas ao antecipá-las a Ordem pode contribuir para que a autoridade (e não poder) dos dirigentes seja claro, explicito e até reconfortante para os mais novos.

  1. Daqui resulta a já referida estrutura e organização que deve ser colocada ao serviço dos doentes.

Atualmente assistimos a uma narrativa de desagregação dos serviços médicos (públicos) e uma incapacidade de abraçar novos modelos integrativos de cuidados; e que no sistema privado poderão estar todas as respostas. Este caos, que referia em que se constroem estórias de vilões só o são, muitas vezes de forma enganosa e demagógica. Ao dizer que o SNS está em falência … não pode ser resposta, potenciar unicamente o sistema privado! Duas notas: existem muitos exemplos contrários e por isso é possível! E não entendam as minhas palavras com qualquer visão maniqueísta ou dogma… O que penso é que a consistência e flexibilidade da resposta no que diz respeito ao exercício médico deve ser única e organizada em todo o sistema.

E o que pode a Ordem fazer em relação a isto?  Não se confundido com sindicatos, pode elaborar pareceres sobre papéis e competências médicas na multiplicidade de estruturas atuais bem como definir estruturas mínimas que garante a segurança e “serviço” aos doentes. Deve a Ordem tentar evitar que jovens médicos sejam expostos à mais óbvia decisão – de um lado, a falta de recursos, as tais muitas vezes hierarquias de poder, e do outro, a aparente liberdade e financeira mais reconfortante, mas sem o trabalho em equipa, sem carreira… que só levará a termo ao isolacionismo das suas práticas, e a situações de precaridade! E, aos mais velhos, lhe permitam exercer as suas competências e flexibilidade de ação e reconhecimento, na mudança necessária – cada vez é mais difícil assumir atividades de gestão apenas apoiadas na motivação transcendental – tem que ser possível apoiar tempos de desenvolvimento e ciência sem penalização e por outro, motivar e inovar em modelos de compensação financeira. À Ordem deve ser exigido que em qualquer “momento” de contacto médico-doente, esta estrutura esteja clara.

  1. Os dois pontos anteriores surgem claramente no âmbito da ação da Ordem dos Médicos – trabalhar na formação da pessoa médica, das suas carreiras, e da organização do seu trabalho mas é também fundamental trabalhar para uma medicina mais sustentável. Normalmente entendida no seu aspeto financeiro, é-o cada vez mais num sentido mais lato de “ecologia”, tendo em conta os vários atores do sistema (outras profissões e doentes), os vários locais de trabalho (ie, referenciação, áreas de medicina familiar e hospitalar e …) e o aspeto mais estrito, da pisada ecológica.

E o que pode a Ordem fazer em relação a isto? Fomentar a discussão aberta sobre as várias intervenções, recomendações e outras atitudes num sentido de que “menos pode ser mais” para beneficio social e do doente.  Temos responsabilidade todos de agir também neste sentido, no sentido de discutir de que forma é que os cuidados podem ser muitas vezes menos defensivos, e ser equitativos e cada vez mais centrados em “resultados de interesse para os doentes” e sociedade. Temos que agir para não reagir também aqui já que dada a finitude de recursos é óbvio que os primeiros pontos continuarão em risco .

Fiz toda a minha carreira clínica e universitária em Portugal, mas tive a oportunidade também pelas diversas atividades ao nível internacional de refletir neste texto os aspetos que não são únicos ao nosso contexto.  Mas penso que estamos num contexto muito próprio em que é preciso mudar de narrativa para que possamos continuar a permitir outros serem felizes sendo médicos em Portugal em liberdade e ávidos de melhorias nas suas atividades profisionais e na vida dos doentes.

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