Pedro Lopes Guimarães1 e Jorge Amil Dias2

Cobertura de cuidados de Medicina Geral e Familiar aos Portugueses? “Tudo na mesma, como a lesma”

04/24/2025

Atualmente, cerca de 1,6 milhões de utentes continuam sem médico de família em Portugal — um aumento de mais de 30 mil desde janeiro de 2025. Esta realidade reflete o insucesso repetido dos concursos para colocação de médicos de Medicina Geral e Familiar (MGF), com centenas de vagas por preencher mesmo em concursos nacionais e descentralizados, e um desfasamento crónico entre a disponibilização de vagas e as necessidades reais no terreno.

Nos últimos dois anos, realizaram-se três concursos principais para MGF:

Em maio de 2023, abriram-se 978 vagas, das quais apenas 313 foram preenchidas (~32%), ficando 665 vagas por ocupar.

Em 2024, um novo modelo de concursos descentralizados pelas Unidades Locais de Saúde (ULS) permitiu abrir 904 vagas em MGF, com apenas 279 ocupadas (~30%).

Por fim, em dezembro de 2024, um concurso nacional extraordinário para recém-especialistas disponibilizou 225 vagas, mas apenas 63 foram preenchidas (~28%).

Estes números confirmam a persistência de uma baixa taxa de ocupação, sobretudo em regiões cronicamente deficitárias como Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, onde se registaram taxas de desocupação superiores a 80%. Esta incapacidade de atrair e fixar médicos nestas zonas decorre não só de uma ausência de planeamento realista, mas também da inoperância dos incentivos atualmente em vigor, que continuam a ser de natureza variável, pouco atrativos e frequentemente inconsequentes.

Apesar de promessas públicas para a revisão do regime de incentivos à fixação em zonas carenciadas, tais alterações não se concretizaram. Os concursos continuam a ser lançados com base em mapas de vagas administrativos, sem integração eficaz com as necessidades clínicas e sociais da população ou com as expectativas profissionais dos médicos em início de carreira.

Paralelamente, a criação das ULS — embora com potencial para maior integração de cuidados — implicou uma reorganização acelerada e pouco acompanhada, com perda de know-how nas estruturas de gestão regional e aumento da complexidade burocrática, nomeadamente no processo de contratação e integração de novos profissionais.

Neste contexto, a Linha SNS 24 passou a ser, em várias localidades, a porta de entrada do SNS, mesmo onde não existiam evidências de incapacidade de resposta dos cuidados de saúde primários (CSP) às solicitações agudas. Esta transição, assente em algoritmos clínicos não validados para os CSP, compromete a continuidade de cuidados, pilar central da MGF, e interfere diretamente na gestão clínica das unidades, dificultando a referenciação adequada e o seguimento longitudinal dos utentes — aspetos comprovadamente associados a redução da mortalidade e melhor uso dos recursos.

A introdução das USF modelo C, como solução para zonas de difícil colocação, carece ainda de clareza organizacional, contratual e funcional. Persistem dúvidas legítimas quanto à sua articulação com as ULS, à garantia de equidade no acesso e à valorização do trabalho em equipa multidisciplinar, fundamentais no modelo de saúde familiar.

A tudo isto soma-se a ausência de mecanismos eficazes para a reposição de vagas potencialmente relocalizáveis por médicos que mudaram de projeto profissional. A falta de resposta a estes pedidos acentua o desencanto e o abandono do SNS, mesmo por parte de profissionais ainda motivados para o serviço público.

É urgente libertar o SNS de entraves burocráticos na contratação, que contrastam com a agilidade do setor privado. O sistema deve manter vagas disponíveis de forma permanente, prontas a ser ocupadas por médicos interessados, sem depender de ciclos morosos de concursos e decisões administrativas desfasadas da realidade.

A resposta do SNS não se pode basear em ferramentas de contingência — como a Linha SNS 24 ou os CAC — sem garantir que essas soluções são cientificamente validadas, transparentes na sua execução e sujeitas a análise rigorosa dos seus impactos, particularmente sobre os utentes mais vulneráveis.

A sustentabilidade do SNS exige planeamento estratégico com base em dados, incentivos eficazes, responsabilização da gestão e valorização da continuidade de cuidados. Sem estas condições, continuarão a repetir-se concursos com vagas desertas, centros de saúde com médicos em burnout ou a funcionar com equipas incompletas, e um sistema que empurra os utentes para soluções avulsas, em vez de fortalecer a resposta de proximidade.

 

1 Coordenador USF Espaço Saúde, ULSSA, Assistente Graduado MGF. Mestre em Gestão e Economia de Serviços de Saúde

2 Pediatra e Gastrenterologista Pediátrico, Hospital Lusíadas, Porto

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