Pedro Pereira: Médico Interno de Medicina Geral e Familiar a exercer funções na USF Faria Guimarães (ULS São João). Candidatura "Ordem com Confiança", Lista C, à Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos”

O fim do princípio

05/29/2025

Todos os princípios têm um fim. O da Medicina é o Internato Médico, a fundação basilar da formação especializada de quem exerce uma das mais nobres artes profissionais.

A prática da Medicina é mais que apenas o componente técnico-científico, que se começa a adquirir na escola médica e que prossegue obrigatoriamente ao longo de toda a vida profissional, mas também o desenvolvimento de competências sociais e emocionais na relação com o outro — sobretudo com o outro frágil, que confia no médico para construir saúde e recuperar da doença. É o aprimorar da capacidade de adaptação ao contexto cultural, socio-económico, demográfico e epidemiológico dos indivíduos, das comunidades e do território onde pratica, sendo capaz de oferecer os melhores cuidados a cada pessoa em cada momento. É a arte de querer cuidar, além do número, da objetividade e do concreto, a subjetividade do ser inerente à irrepetibilidade da vida.

A concretização deste desenvolvimento científico, sociocultural e pessoal só é possível num meio que incentive e proteja o direito à aprendizagem contínua, o acesso a meios de ensino prático dignos e adaptados às várias fases da formação dum jovem médico e que garantam condições de segurança para a prática em diferentes graus de autonomia.

Ao longo da última década, os jovens médicos têm assistido a uma degradação das condições do internato médico, sobretudo no seio do Serviço Nacional de Saúde, refletindo as limitações de recursos técnicos e humanos, às quais se associa a redução da atratividade geral da prática médica por perda real do poder de compra e por uma crescente sobrecarga burocrática e até judicial — com a chega a Portugal de realidades de conflito na saúde conducentes a métodos de medicina defensiva. A progressiva diminuição da atratividade do internato médico tem-se tornado cada vez mais clara à medida que a capacidade de formação especializada deixou de conseguir acompanhar o número anual de novos formados em Medicina (a partir de 2015) e quando se começaram a verificar vagas não preenchidas para a formação específica, apesar de haver manifestamente mais candidatos que vagas disponíveis.

O momento a que chegámos é, contudo, o resultado dos erros cometidos e perpetuados ao longo de décadas por ação e inação.

Por ação, através das discussões recorrentes relativas à obrigatoriedade de permanência coerciva e involuntária no serviço de formação, como se o Internato Médico fosse uma benesse do formador e não um programa mutuamente benéfico resultante de anos de plano de pleno direito e que exige diga compensação salarial. Pela prossecuação dum modelo que rebenta pelas costuras a capacidade das escolas médicas à custa da qualidade do ensino e que exige dos médicos internos muito mais do que lhes seria digno exigir num momento de formação e aprimoramento pessoal e profissional.

Por inação devido à ausência da universalização da garantia de tempo protegido para estudo e produção científica, que hoje se consagra apenas no programa de formação específica em Medicina Geral e Familia e em Saúde Pública. Pela demora na abordagem a temas de nuclear relevância para a motivação dos jovens médicos como são o do assédio laboral e pessoal no seio das instituições de saúde e, por vezes, entre médicos. Pela dificuldade de compreensão de que a prática da Medicina hoje já não se rege — nem tem meios sociais, político e económicos — pelo mesmo conjunto de normas deontológicas, técnicas e profissionais de há 20 ou 50 anos, baseado na dedicação total e incondicional, independentemente das demais vertentes da pessoa que é profissional de saúde. Pelo laxismo e resistência conservadora à reforça profunda do funcionamento do Internato Médico desde a sua estruturação formal.

Chegados ao fim do princípio da discussão, em que os diagnósticos se vão tornando cada vez mais consensuais, é o momento de endereçar de forma série e objetiva as diferentes soluções disponíveis, garantindo a dignidade do internato médico, a Liberdade da prática da Medicina e os direitos e deveres intrínsecos ao seu exercício. Sem amarras nem preconceitos. Sem deturpação maliciosa das posições de quem a nós se opõe num determinado momento. Sem usar o Internato Médico nem os jovens médicos internos como uma arma de arremesso ou uma espécie de token utilitário sem valor intrínseco. A mudança é funciona e faz falta à formação médica.

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