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Anamnese de uma pandemia
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna
que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz;
(António Gedeão, excerto do Poema da Eterna Presença)
São já inúmeros os estudos de investigação que pretendem esclarecer, dar a conhecer, explorar ou simplesmente relatar factos relacionados com a actual pandemia de Covid-19; no entanto, ainda estamos longe de compreender a realidade desta doença que veio alterar de modo tão profundo o nosso quotidiano.
Para além da maioria dos estudos já conhecidos dizerem respeito a aspectos locais ou parciais da doença e do agente por ela responsável (o SARS-CoV 2), os resultados por vezes contraditórios não permitem, por enquanto, entender na totalidade o que nos reserva esta pandemia.
A incerteza e a imprevisibilidade quanto ao futuro imediato são tão grandes que não admira que surjam muitas e diferentes opiniões, previsões e palpites, para todos os gostos e paladares. Se a incerteza sempre foi apanágio da Ciência, em geral, e da Medicina, em particular, ela assume agora o papel principal. Arriscaria dizer que a incerteza é a única certeza que temos, nestes tempos.
Parafraseando um antigo jogador de futebol, “prognósticos só no fim do jogo”, que é como quem diz, utilizando terminologia científica, o diagnóstico desta pandemia só se fará quando ela terminar.
Por enquanto, vamos fazendo a sua anamnese*, isto é, vamos à memória buscar os factos relevantes para ajudar no diagnóstico.
Um dos factos relevantes a ter em consideração na história que vier a ser feita desta pandemia é o medo. Todos temos ou tivemos medo, face a esta ameaça inicialmente invisível mas que depressa se tornou real.
Eu tive a tendência inicial de pensar que se tratava de mais um ‘daqueles vírus’ que surge apenas em países orientais e que não nos iria incomodar, que íamos voltar a exagerar em cuidados e preciosismos que se tornariam ridículos quando se percebesse que ‘afinal não tinha sido nada’.
Mas quando a infecção pelo novo Coronavirus atingiu a Europa e rapidamente se propagou, eu também tive medo. E veio-me à memória o que tinha ouvido contar sobre a pandemia da gripe espanhola. O meu avô, então um jovem chefe de família, trabalhou como voluntário da Cruz Vermelha durante esses tempos e as histórias que contava incluíam factos como ter entrado em casas onde todos os habitantes tinham morrido e ele mesmo ter perdido dezoito familiares devido à pandemia! Ainda hoje recordo impressivamente o retrato em tamanho natural de uma criança de seis anos de idade, que sempre vi numa das paredes da casa do meu avô; era o do seu primogénito, um tio que nunca cheguei a conhecer.
Confesso que temi pelo que poderia acontecer, ao relembrar estes factos e que o temor durou alguns dias. Os suficientes para recuperar a convicção de que a mim, como profissional de saúde, como médico de família habituado a estar na ‘linha da frente’, não me restava outra coisa que não fosse cumprir as minhas funções e ajudar a combater esta nova doença.
Depois do medo, a lembrança da coragem do meu avô e do modo como sobreviveu a tudo isso deram-me a força necessária para enfrentar a vida, com todos os seus imprevistos.
(*) A palavra anamnese tem origem no grego ana, trazer de novo e mnesis, memória.
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