Tânia Russo Médica pediatra e dirigente da FNAM

O lado obscuro dos médicos precários na COVID-19

07/14/2020

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O lado obscuro dos médicos precários na COVID-19

14/07/2020 | Opinião | 0 comments

A precariedade laboral é um flagelo que gera desigualdade e fragilidade, inquinando o projeto de vida dos trabalhadores e a prosperidade económica do país. Portugal, onde 21% dos trabalhadores têm um contrato não permanente, é o terceiro país da União Europeia com maiores níveis de precariedade. Surpreendentemente, ou não, a saúde não escapa a esta realidade. Na verdade, o problema adensa-se com a pandemia, deixando desprotegidos centenas de profissionais de saúde que todos os dias se arriscam na linha da frente.

As medidas austeritárias da troika impuseram o emagrecimento dos quadros de pessoal na administração e empresas públicas, restringindo a contratação. Mas as imposições cegas não tornaram desnecessários os trabalhadores, apenas varreram para debaixo do tapete uma carência que se vem instalando no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e acabaram por levar à contratação através de vínculos precários. Com a enorme expansão dos grupos privados, em boa parte à custa da degradação das condições de trabalho no setor público, o problema adensou-se. Entre os médicos, a crescente falta de vagas para formação especializada, desde 2014, também tem agravado o problema da precariedade. Em 2019, foram 564 os jovens médicos que ficaram sem acesso a especialidade. Com menos formação e sem diferenciação, ficam especialmente vulneráveis à contratação precária e a um futuro profissional incerto.

Esta realidade relativamente recente da profissão médica permanece como o lado obscuro que não se quer conhecer. Não existem números oficiais sobre quantos são nem onde estão. O que se sabe são apenas os casos ao nosso lado que todos conhecemos. Geralmente são contratados como trabalhadores independentes (os famosos recibos verdes) ou através de empresas de trabalho temporário. Mais recentemente, tem surgido uma outra forma de contratação: as empresas em nome individual ou coletivo, detidas pelos próprios médicos, em muitos casos constituídas por pressão das entidades contratantes para se livrarem das habituais despesas com os trabalhadores, como a contribuição para a Segurança Social e os seguros. O resultado deste submundo da precariedade é que o trabalhador tem menos proteção por exemplo na eventualidade de doença, está mais vulnerável a abusos e despedimento e ficam do seu lado a maior parte ou todos os encargos inerentes ao trabalho. Para quem está preso a uma empresa de trabalho temporário, há que contar ainda que esta lhe fica com uma parte do salário. Portanto, menos direitos, menos proteção e menos salário para os médicos precários.

A precariedade entre os médicos existe tanto no setor privado como no público. As urgências, jóia da coroa de qualquer unidade de saúde, são onde se encontram mais. Mas também não é raro encontrar médicos precários a fazer cirurgias e consultas, até mesmo especializadas.

Com a chegada do novo Coronavírus, as necessidades alteraram-se. Mas não da mesma forma para todos os serviços nem para todos os trabalhadores. Alguns serviços viram a afluência reduzir drasticamente e, por esse motivo, dispensaram profissionais. Os mais fáceis e mais baratos para despedir são sempre os precários, que assim se viram de um dia para o outro sujeitos a uma redução brutal (ou mesmo total) do seu rendimento e sem direito a qualquer compensação por despedimento. Assim aconteceu em muitos hospitais e clínicas privadas que em plena pandemia encerraram os seus serviços parcialmente ou na totalidade, deixando profissionais sem vencimento e utentes sem acesso a cuidados de saúde. Mas aconteceu também em muitos serviços de urgência públicos em todo o país.

Outras unidades fora obrigadas a reforçar equipas num SNS já com grandes carências de recursos humanos. Muitos destes médicos foram contratados com recurso a vínculos precários, expondo quem está na linha da frente ao risco de infeção sem lhes garantir a devida proteção. Os médicos contratados no âmbito do reforço da resposta à pandemia que tiverem de ficar em isolamento profilático ou que se infetem no exercício da sua profissão, não terão direito a qualquer assistência na doença nem proteção, uma vez que não cumprem os seis meses de prazo de garantia. Os médicos que pertençam a grupos de risco para a COVID-19 não podem beneficiar do justo direito de se resguardar, a não ser que percam o seu rendimento, e muitos acabam por ter de se arriscar a uma infeção grave.

Estas situações já aconteceram e vão continuar a acontecer, enquanto o SNS e as entidades privadas insistirem na precarização dos seus profissionais e na desresponsabilização pela sua segurança. Se não cuidarem dos profissionais de saúde, como esperam que estes possam cuidar dos utentes? Este é um lado obscuro da realidade da saúde que urge mudar.

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