HealthNews (HN)- Assistimos a uma explosão do Grupo Germano de Sousa nos últimos dez anos. Quais os principais marcos deste período?
Germano de Sousa (GS)- Há um aspeto que me parece importante e que explica tudo isso. Apareceu um grande grupo, por volta de 2003 ou 2004, que queria comprar tudo o que mexia na minha área, nomeadamente o meu laboratório que, embora respeitado, era um laboratório médio. Eu, nessa altura, era bastonário da Ordem dos Médicos, estava a acabar o meu mandato, e não me apetecia vender-me, nem andar a mando de ninguém. Muito menos me apetecia deixar de exercer a minha especialidade com dignidade, qualidade e elevado respeito pelo doente e pelos médicos que em mim confiavam. Chamei os meus dois filhos, que eram recém patologistas clínicos, e perguntei-lhes se eles queriam que vendêssemos o laboratório ou se queriam ajudar-me a construir um grande grupo para fazer frente a qualquer outro grupo estrangeiro ou nacional que pretendesse tomar conta do país, olhando apenas o lucro, e prejudicasse o escopo fundamental da Medicina Laboratorial: o doente. Eles responderam: “Pai, vamos apertar o cinto e vamos em frente”.
No início foi muito difícil, mas apostámos em algo que tem sido o que leva a que os doentes nos procurem e que os colegas nos mandem os doentes: qualidade; competência científica; comunicação constante com os clínicos, sendo seu consultor quando necessitam; estar a par de todas as inovações que mais interessam para a medicina e acompanhar a evolução brutal e constante que a mesma sofreu. Foi isso que permitiu, a pouco e pouco, crescer. Não crescemos por aquisições, excetuando o Laboratório do Porto, que tivemos de comprar. Não tinha um fundo por trás de mim. O dinheiro era aquele que eu e os meus filhos tínhamos. Tentámos crescer instalando postos de recolha em todo o país, dando as melhores condições aos doentes, sendo presença constante junto dos colegas que enviavam os seus doentes, explicando o que fosse preciso e discutindo com eles casos clínicos. Fomos também trabalhando com grupos de saúde de grande nível, e foi assim que fomos crescendo, e de dia para dia constantemente mais procurados.
A razão de ser da “explosão” que refere é, no fundo, simples: tem de haver sempre a ética, o bom senso e o saber do especialista, que está no fim dos resultados, e o sentido de que estamos ao serviço do doente. O êxito do grupo laboratorial que com os meus filhos detenho deve-se sem dúvida e resumidamente a isso.
HN- Neste caminho, quais as principais dificuldades?
GS –De um momento para o outro houve da parte da tutela um abaixamento acentuado dos preços. Vários laboratórios mais pequenos não conseguiram aguentar. E qual é a única maneira que nós temos de aguentar um embate desses? É concentrando, automatizando, robotizando e informatizando. Para isso precisamos de ter número, porque não o podemos fazer quando o número é pequeno. Criámos escala, e isso permitiu-nos, obviamente com dificuldade – os preços hoje não são nada de especial –, aguentar à tona de água, o que não foi possível acontecer com os laboratórios de pequena e, até, média dimensão.
HN- Entretanto começaram a surgir novas e mais complicadas exigências ao nível da Medicina Laboratorial.
GS- Havia há muitos anos a especialidade de análises clínicas, cujo conteúdo não correspondia às reais necessidades do sector. Era necessário dar um conteúdo diferente e mais eficaz à mesma. Assim, em 1980, com mais um colega, o Dr. António Forte Vaz, infelizmente já desaparecido, criei a especialidade de patologia clínica, com um conceito e um conteúdo completamento diferentes do que eram as análises clínicas. A patologia clínica pressupõe uma integração muito grande entre a clínica e o laboratório. E nestes últimos 35 anos (talvez mais), começou-se gradualmente a verificar que cada vez mais a evolução da especialidade era de tal modo gigantesca – não há uma semana em que não apareça um teste novo, não há uma semana em que não se consiga esmiuçar ainda mais um problema, até mesmo criar novas entidades diagnósticas a partir daquilo que o laboratório dá –, que isso levou-nos, a quem pratica a especialidade como deve ser, a sentir que somos não só cada vez mais úteis ao doente e ao médico assistente, como, em muitos aspetos, somos fulcrais para o diagnóstico.
HN- E daí o avanço para uma nova área, acompanhando a medicina de precisão.
GS- Os tumores são formações anómalas de células, mas que têm o seu próprio genoma. Estudar esse genoma permite procurar uma terapêutica adequada. Os tumores são diferentes em consequência da sua biologia. Acima de tudo, o que é importante é nós identificarmos, numa biópsia tissular de um tumor, quais são as alterações biológicas que aquelas células neoplásicas sofreram e, através da pesquisa de marcadores genéticos, procurar os erros existentes, o que depois nos permitirá dizer: este marcador existe, é positivo ou é negativo, e ao ser positivo remete para o interesse do medicamento A ou do medicamento B neste doente. Assim, a terapêutica, ou, se quiserem, a Medicina, passa a ser personalizada, ou, como Obama a crismou, de precisão.
Outro aspeto também muito importante é a biopsia líquida. Fomos pioneiros, aqui em Portugal, na biopsia líquida. Uma neoplasia produz o seu próprio DNA, as suas próprias alterações ao DNA. E nós conseguimos, tirando uma quantidade relativamente pequena de sangue, isolar o DNA tumoral do DNA do hospedeiro que circula no sangue, sequenciando-o depois e verificando as suas alterações. E isso é importante por duas razões. Primeiro, porque é uma ferramenta importantíssima no seguimento de uma neoplasia já diagnosticada. Segundo, porque cada vez mais se caminha para a ideia de que é possível, num indivíduo que não sabe se tem um cancro, ou em que há suspeitas, tirar sangue e, a partir desse sangue, saber ele tem ou não um tumor. É algo que se começa a estudar com muita atenção. Ainda não há bases completamente definidas, mas lá chegaremos dentro de três ou quatro anos.
Naturalmente, a primeira coisa a fazer é retirar o tumor, é operar o doente, mas depois há sempre o risco de haver metástases. E esta biópsia líquida, se houver metástases, mesmo que sejam micrometástases, vai-nos ajudar a perceber se o tumor ficou curado ou continua a desenvolver-se. E mais: muitas vezes, no decorrer da terapêutica, surgem resistências à medicação instituída. A biópsia líquida vai-nos permitir, ao estudar o DNA tumoral circulante, verificar se há alternativas à terapêutica, permitindo que os colegas oncologistas mudem mais facilmente para outras terapêuticas mais eficazes.
Uma área muito importante que investigamos regularmente é o risco hereditário de cancro. Cerca de 15% dos cancros são hereditários, variando esta percentagem em função do tipo de cancro. No entanto, e no cumprimento da lei e da ética, não fazemos essa pesquisa em qualquer pessoa que apareça aqui para, por sua alta recreação, fazer um estudo desses. Ou vem indicada por um médico, ou passa primeiro pela consulta de uma médica geneticista que aqui trabalha. Se essa médica geneticista entender que vale a pena fazer a pesquisa, faz-se; se ela entender que não faz o mínimo sentido, não fazemos. Estudamos todo o tipo de genes. Temos, por exemplo, um painel de cancro da mama hereditário em que estudamos cerca de 30 genes diferentes. Fazemo-lo, mas só quando há uma história suspeita.
Saindo da oncologia, temos outro campo muito interessente: a Farmacogenómica. Cada vez mais somos procurados para saber se o medicamento A ou o medicamento B é adequado ou não à pessoa que o toma e se as suas características genéticas permitem ou não a sua ação farmacológica.
Outro campo muito interessante que eu comecei a desenvolver é o do Microbioma. Nós somos metade células humanas, metade micróbios. Os milhões de bactérias que temos no intestino, na boca e noutras cavidades são essenciais, muitas vezes, para o nosso comportamento imunitário, e não só. Já há muita literatura científica publicada sobre o interesse do Microbioma em muitas situações. Desenvolvemos uma técnica própria para estudar os diversos Microbiomas, quer intestinal quer vaginal, embora por enquanto nos dediquemos mais ao Microbioma intestinal. Os nutricionistas têm estado muito interessados nisso, porque permite-lhes alterar a dieta em função do tipo de Microbioma e de bactérias que nós encontramos. Mas, no futuro, e eu ainda ontem li um artigo perfeito sobre isso, será muito interessante, porque já vão havendo provas do interesse do Microbioma e da sua modificação em relação ao cancro, em relação às doenças autoimunes, em relação ao próprio Alzheimer. É algo que nós não podemos pôr de lado. Eu nunca pus de lado isso, até porque, pensando bem, se somos metade células, metade micróbios, temos de perceber como é que estes seres vivos realmente nos afetam, para o bem e para o mal.
HN- No meio deste percurso, cai uma bomba: a Covid-19. Como foi lidar com essa crise?
GS- No início não pensei que chegasse a Portugal, mas começámos a perceber, a pouco e pouco, que as coisas não iam ser assim. Aguardei, naturalmente, instruções nacionais da Direção-Geral da Saúde, mas comecei a preparar-me antes disso para fazer os testes que eu sabia que iam ser necessários. Eu sabia que o Estado não tinha condições para responder. O próprio INSA, que tem sempre as tecnologias de ponta, tinha um número limitadíssimo de respostas. Então, comecei a mexer-me no estrangeiro. A técnica molecular do PCR serve quer para a hepatite B, quer para o vírus da SIDA, entre outros. É só uma questão de mudar as sondas que reconhecem o DNA ou o RNA em questão. Procurei adquiri-las de imediato na Europa. Só que toda a gente tinha pensado no mesmo.
Tive de adquirir plataformas tecnológicas que permitissem acompanhar um surto, que eu sabia que ia ser gigante, de pedidos de testes. Nessa altura, a procura era tanta e a escassez de produto era tanta também, que eu cheguei, para fazer uma única análise, a pagar 90 euros só em reagentes. A pouco e pouco as coisas foram normalizando.
Foi muito difícil no início. Creio que fomos muito importantes, e conseguimos fazer com que o país aguentasse o primeiro embate. E isso leva-nos para um aspeto político interessante. Nós, laboratórios convencionados, somos parte integrante do SNS. Em 1978, tive uma conversa com um saudoso amigo, o Dr. António Arnaut. Estávamos a falar sobre o que ia ser o Serviço Nacional de Saúde, e eu perguntei-lhe o que é que íamos dar aos doentes, num país em que as estruturas de saúde eram escassas. E ele disse: “Eu não sei bem como é que vamos conseguir isso”. Eu disse: “Faça uma coisa que a Ordem dos Médicos já recomendou e que nós verificamos que existe em toda a Europa, que são as convenções”. Os médicos, por um preço socialmente justo, nos seus gabinetes, nos seus laboratórios, nas suas radiologias, podem trabalhar para o Serviço Nacional de Saúde e fazer parte do Serviço Nacional de Saúde. De então para cá, foi o que sempre aconteceu. Nós prestamos os nossos serviços ao Ministério da Saúde, ao Serviço Nacional de Saúde, por um preço que é decidido pelo Ministério da Saúde.
HN- E que normalmente é mais baixo do que o SNS conseguiria sozinho?
GS- Muito mais baixo. Aquilo que nos pagam é cerca de 20% mais barato do que custaria se feito nos hospitais. Além de que cobrimos 99,9% de todo o país.
HN- Agora tem-se falado mais frequentemente na ideia de internalizar. Como é que vai ser em termos de custos?
GS- Insuportáveis para o Estado. Antes de a Covid surgir, em todo o país, eram realizadas diariamente, nos laboratórios convencionados, colheitas a 22.000 doentes provenientes dos Centros de Saúde e USF.
Durante os dois anos da pandemia, o número triplicou, em consequência da necessidade de testes para a Covid – necessidade essa que, como lembrei, o Estado foi incapaz de resolver.
Passada a Covid, não descortino como, diariamente, irão conseguir internalizar tão elevado número de doentes, quando os hospitais mal conseguem dar conta dos exames necessários aos doentes internados e continuamente recorrem a concursos externos.
Mas, enfim, como é sabido, a Saúde sempre foi fértil em visões mirabolantes que se revelam depois tolices completas, e não apenas em termos de custos. As visões ideológicas são como os delírios esquizofrénicos. Nunca levam em conta a realidade.
Desde a criação do SNS que assisti a tentativas destas. Terminaram todas em fracasso. Lembro-me por exemplo da tentativa de introdução de sistemas de química seca que, como seria de esperar, nunca funcionaram e acabaram mal, apodrecendo encostados a um canto.
Argumenta-se que agora é que vai ser. Que tudo vai ser diferente pois quem paga a aparelhagem é o PRR. Parece que sim. Pois… Se eu fosse contribuinte europeu, dava por paus e por pedras se soubesse que o dinheiro dos meus impostos ia ser desbaratado desta forma inútil.
Não se percebe bem porquê. Estando nós com uma rede tão lata de laboratórios e de postos de colheita, bastava terem feito um acordo com cada um dos laboratórios, que tomariam conta do centro de saúde A ou B e se comprometeriam a estar abertos durante a noite e a dar os resultados quando fossem precisos.
Querem apetrechar os centros de saúde e os ACES com análises e imagiologia. Olhando para a intenção, compreendemos que os aparelhos (hardware) podem ser comprados com recurso a verbas do PRR. Mas os reagentes não. Contas feitas, vai-lhes sair o dobro do que nos pagavam a nós. Têm de pôr pessoal, médicos da especialidade, controlos de qualidade. A opinião não é minha, é de gente da saúde que já disse abertamente que isto não fazia sentido nenhum e não levava a lado nenhum. Mas ok. Albarde-se o burro à vontade do dono. Ou, como dizia Salazar: manda quem pode, obedece quem deve.
HN- Como é que vê a distribuição dos fundos do PRR?
GS- Devíamos fazer o que fez a Grécia e a vizinha Espanha, com problemas estruturais semelhantes aos nossos e que valorizaram as estruturas privadas, pois são estas quem cria riqueza. Custa-me entender porque é que o Partido Socialista, que é indiscutivelmente um partido social-democrata, no qual me revejo, não o fez e preferiu valorizar predominantemente as estruturas públicas que não vão criar riqueza.
Espero dê bom resultado. Eu só quero o bem do meu país.
HN- Desafios para o futuro difíceis e empolgantes.
GS- Vamos ter, no futuro, indiscutivelmente, três áreas que se vão desenvolver enormemente. Uma delas já falámos: a genómica não vai ficar por aqui. Cada vez vamos saber mais sobre a genómica, vamos ter de desenvolver mais tecnologias e mais áreas de diagnóstico na área da genómica, que vão permitir explicar, prever, fazer medicina preditiva em todos os setores da saúde humana.
Em medicina, quando falamos para além de 10 anos, nunca sabemos se estamos a acertar. Mas, nos próximos dez anos, vai ser isso que vai acontecer: vai-se desenvolver cada vez mais a medicina preditiva, a medicina de precisão, etc., e com resultados fantásticos. Estou convencido de que daqui a uns anos vamos começar a estudar a criança e saberemos exatamente o que é ela pode, se fizer isto ou aquilo, vir a ter. Isso pode significar um bem-estar muito grande do ponto de vista individual, e é para aí que nós caminhamos. Já não falo só no diagnóstico da doença instalada, mas da previsão da doença futura.
Outro grande campo, cada vez mais interessante, é o das doenças autoimunes. Cada vez mais as doenças que não se julgava que tivessem um fundo de doença autoimune têm problemas de autoimunidade. Os mecanismos da autoimunidade vão ser cada vez mais esclarecidos, nomeadamente a nível molecular, e vão permitir, como é evidente, uma melhor terapêutica e um melhor esclarecimento de determinadas doenças que ainda hoje não se entendem bem.
Outra área que todos os dias evolui, e eu tenho investido muito nisso, é o campo das doenças oncológicas a nível hematológico – as leucemias, os linfomas – e cada vez mais vai ser possível despistar todas as mínimas alterações que se encontram em indivíduos que aparentemente estavam bem e que iriam estar bem até determinada altura, mas que já têm lá marcado o selo da sua doença.
Claro que, evidentemente, as outras [especialidades] também vão evoluir.
Vai haver várias epidemias a vírus – ainda nem sabemos quais, mas conto que vamos tê-los com o aquecimento terrestre – e nós vamos ter de fazer os diagnósticos. O Dengue vai aparecer no Alentejo. O aquecimento vai levar a isso. Oxalá que não tenhamos outra vez malária. O Zika se calhar também vem para cá, etc.
Vai ser um mundo no qual os laboratórios convencionados vão continuar a constituir uma grande barreira contra todas essas infeções. O grande alerta passa por nós. Espero que as ideologias não nos destruam, porque depois nada terão para oferecer em troca.
Entrevista de Miguel Mauritti
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