Os resultados foram publicados esta terça-feira (21 de junho) na revista Frontiers in Oncology.
O MM é um cancro de células da medula dos ossos – mais precisamente, de certos tipos específicos de linfócitos B, os plasmócitos. Os linfócitos B são as células do sistema imunitário que normalmente produzem anticorpos protetores. Mas, no caso do MM, os linfócitos B anómalos não produzem anticorpos protetores e proliferam descontroladamente. Formam tumores e perturbam não só o funcionamento do próprio sistema imunitário, mas também a geração de outros tipos de células pela medula óssea, tais como os glóbulos vermelhos, provocando anemia.
“O mieloma múltiplo é um tumor de um órgão (a medula) que vive dentro de outro órgão (o osso)”, diz Cristina João. Não admira, portanto, que os ossos sejam das primeiras vítimas da doença: “como há uma expansão da medula óssea devida à proliferação dos linfócitos B anómalos (que residem na medula óssea) e essas células também produzem substâncias que tornam os ossos mais frágeis, mais de 80% dos doentes têm fraturas. O MM destrói os ossos dos doentes”, explica a investigadora. Além disso, pode causar problemas noutros órgãos, como insuficiência renal ou problemas cardíacos, quando os linfócitos tumorais ou as moléculas produzidas pelas células do MM se depositam nesses órgãos.
O mieloma múltiplo é o segundo cancro do sangue mais frequente nos adultos. Normalmente declara-se em pessoas na casa dos 70 anos, com os doentes a apresentarem (pelas razões já evocadas) infeções recorrentes, anemia, fadiga, dores nos ossos e fraturas. Hoje em dia, a sobrevivência média a cinco anos ronda os 50%. “É muito melhor que há vinte anos. Porém, ainda é possível fazer muito melhor, nomeadamente encontrando melhores maneiras de detetar a doença e de fazer o seguimento dos doentes”, afirma Cristina João.
Hoje, o MM é diagnosticado através de biópsias de medula óssea. Mas este procedimento, além de ser muito invasivo, tem outros inconvenientes. Por um lado, pode não ser fiável. Como explica ainda Cristina João, dado que os tumores de MM são muito heterogéneos quer geneticamente quer na sua disposição irregular na medula óssea, o resultado da biópsia depende do local onde a amostra for colhida – o que pode levar a resultados pouco representativos e até falsamente negativos.
Esse não é o único problema das biópsias da medula óssea, acrescenta a cientista. Existem formas precursoras do MM que não são cancros, que são assintomáticas e que, na esmagadora maioria dos casos, nunca irão progredir para o mieloma múltiplo. Estas formas precursoras costumam ser detetadas por acaso numa amostra de sangue e o diagnóstico baseia-se em pequenas proliferações (<10%) dos plasmócitos na medula óssea. Como avaliar com fiabilidade e de forma menos invasiva, em cada doente, o risco de evolução destas formas “benignas” de anomalias dos linfócitos B para o mieloma múltiplo?
Foi por isso que Cristina João e os seus colegas quiseram saber se haveria maneira de substituir as biópsias convencionais por “biópsias líquidas”, ou seja, por uma recolha de sangue. Além de serem minimamente invasivas, as biópsias líquidas prometiam ser mais fiáveis.
Ao tornar-se possível detetar no sangue proteínas específicas do MM e só do MM, raciocinaram, o diagnóstico deste cancro tornar-se-ia muito mais simples e fidedigno. Mas, para concretizar esta ideia, era preciso identificar proteínas no sangue dos doentes com MM que funcionassem como marcadores biológicos específicos da doença.
Participaram no estudo agora publicado doentes do Centro Clínico Champalimaud diagnosticados com MM ou com uma das formas precursoras do MM, chamada MGUS (acrónimo de monoclonal gammopathy of undetermined significance), e também doentes com MM indolente ou SMM (Smoldering Multiple Myeloma).
Os cientistas analisaram as proteínas contidas nas chamadas “vesículas extracelulares” dos doentes. As vesículas extracelulares são pequenos “saquinhos” que circulam no sangue de todos nós. São naturalmente libertados por quase todos os tipos de células, estão carregados de proteínas, material genético, metabolitos e até de componentes da maquinaria da célula de onde saíram, e são formas de comunicação entre células. No sangue dos doentes com MM existem numerosas vesículas extracelulares, incluindo aquelas libertadas pelos linfócitos B anómalos, e foi aí que a equipa procurou potenciais marcadores biológicos.
Utilizando uma técnica específica de estudo das proteínas (a espectrometria de massa), identificaram um conjunto de proteínas nas vesículas extracelulares com potencial de serem novos biomarcadores do MM. Proteínas como APRIL, PDIA3, C4BPA, BTH1A1 são as que mais se destacaram como potenciais biomarcadores. “Trata-se maioritariamente de proteínas reguladoras de funções imunes”, explicita Cristina João. E também de proteínas que, sendo diferentes nos doentes com MM, nos doentes com MGUS e nos dadores saudáveis, permitem distinguir entre as duas doenças.
“Como a utilização da espectrometria de massa ainda não está generalizada”, diz Bruna Velosa Ferreira, primeira autora do estudo, “também quisemos determinar se as características das vesículas extracelulares (medidas com métodos laboratoriais de rotina) permitiam prever o prognóstico dos doentes. E mostrámos, pela primeira vez, que uma carga elevada de proteínas nestes ‘saquinhos’ no sangue dos doentes está associada a desfechos mais negativos, incluindo em termos de sobrevivência e de disfunção imune”.
“O nosso próximo passo será validar e alargar estes resultados (temos em curso um projeto com três hospitais de Lisboa). A nossa meta é incorporar essas proteínas numa escala de avaliação (score) com outros marcadores de prognóstico, incluindo dados genéticos, que possa ser usada para obter prognósticos mais fiáveis e fazer a monitorização prognóstica do mieloma múltiplo”, conclui Cristina João.
PR/HN/RA
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