A invasão russa da Ucrânia provocou uma série de crises relacionadas entre si, desde o enorme êxodo de refugiados, à violência infligida sobre populações e infraestrutura civil, sem esquecer a destruição das infraestruturas de saúde, o que num contexto de população fragilizada pelas dificuldades em aceder a bens alimentares, agrava as necessidades em saúde sentidas.
A OMS efetua o registo sistemático dos ataques efetuados a infraestrutura de saúde. Este ano, encontram-se registados 911 ataques, que provocaram 203 mortos, entre profissionais de saúde e doentes, com 303 feridos. A Rússia é responsável por 70% dos ataques e 50% dos mortos, o que ilustra bem a brutalidade da agressão. Nesta infame lista, Israel surge como o segundo principal agressor, responsável por 15% dos ataques.
As últimas ações russas, aproximam-se do conceito de guerra total sobre o povo ucraniano. Perante a possibilidade de uma derrota estratégia, alicerçada no sucesso da contraofensiva ucraniana, na crescente perceção que as forças russas são fracas, corruptas e incompetentes, e no arrefecer do pouco suporte internacional que ainda detinha, Putin optou pela estratégia clássica: escalou o compromisso da Rússia com a guerra. Na frente caseira, assistimos a um redobrar da repressão e recrutamento forçado, na frente de batalha, a ameaças de utilização de armas nucleares e anexação formal dos territórios conquistados, enquanto a população civil ucraniana é alvo de ataques indiscriminados.
Cerca de uma em cada três estações produtoras de eletricidade encontram-se destruídas. Os apagões são frequentes, o que dificulta toda logística alimentar e de saúde. Um hospital moderno não funciona sem eletricidade. Mesmo cuidados mais básicos, mas igualmente essenciais, não sobrevivem sem energia elétrica. Como guardar vacinas sem refrigeração? A Ucrânia já era dos países europeus com menores taxas de vacinação, o que tem causado os maiores surtos de Sarampo na região europeia das últimas décadas.
Também causou o regresso da poliomielite. Esta terrível doença, que deixa sequelas para a vida, causou dois casos graves em dezembro de 2021, tendo sido identificados mais 19 casos ligeiros. Regra geral, por cada caso grave podemos esperar 100 casos ligeiros ou assintomáticos, ou seja, existe transmissão comunitária do vírus. Este ano, a OMS reporta 61 casos de paralisia infantil. Embora seja bastante difícil efetuar uma vigilância epidemiológica em contexto de guerra, dadas as baixas taxas de vacinação, os refugiados e a dificuldade em aceder a água potável e alimentos, é de esperar que a circulação do vírus na população aumente, criando novas e inocentes vítimas.
Nunca é demais relembrar que o país apresenta das maiores taxas de prevalência de HIV e tuberculose da região europeia. Tratam-se de doenças que requerem a manutenção do esquema terapêutico, não só para promover o tratamento ou o controlo de cargas virais, conforme seja a segunda ou a primeira doença, mas também para não criar as condições necessárias para o aparecimento de estirpes resistentes à terapêutica.
Numa perspetiva mais abrangente de saúde global, a guerra iniciada por Moscovo, ao alterar o equilíbrio geopolítico, assim como o paradigma da multipolaridade onde existia uma relativa cooperação, pode dificultar a resolução de problemas globais de saúde no futuro. Se a relação entre os estados se pautar por um jogo de soma zero, questões que requerem abordagem global baseadas em solidariedade, como as alterações climáticas ou a preparação para ameaças pandémicas, podem não ter a adequada resolução. Como tão bem ficou demonstrado durante a pandemia Covid-19, abordagens nacionalistas à saúde global causam a danos a todos. A solidariedade é a base para construir uma saúde global forte. Temos de trabalhar para que o regresso da guerra à Europa não deixe este triste legado.
0 Comments