Sofia Correia: A clínica de insuficiência cardíaca na ULSM

05/19/2023
Não há nada mais gratificante que podermos contribuir para a construção de algo verdadeiramente útil para os outros, sobretudo quando é feito em equipa. Temos uma verdadeira equipa multidisciplinar e, juntos, estamos a desenvolver um projeto pela melhoria da prestação de cuidados de saúde ao doente com IC.

“O Médico de Família tem um papel fundamental na abordagem da IC, começando desde logo pela prevenção da doença, mas também na otimização do diagnóstico precoce e seguimento de doentes estáveis. Para que este papel possa ser efetivamente desempenhado, há que apostar desde logo na melhoria do acesso a meios auxiliares de diagnóstico nos Cuidados de Saúde Primários (CSP), nomeadamente ecocardiograma completo e doseamento de peptídeos natriuréticos. Esta estratégia permitiria um diagnóstico mais precoce”. Quem o afirma é Ana Sofia Correia, Assistente Hospitalar Graduada de Cardiologia, responsável pela Equipa Clínica de Insuficiência Cardíaca – CLIC da ULS de Matosinhos, uma equipa multidisciplinar, de abordagem ao doente com IC, em que Cardiologistas e Internistas trabalham juntos para melhor responder às exigências e complexidade crescentes do doente com IC

  Healthnews (HN) – Dados do estudo EPICA apontam a prevalência de Insuficiência Cardíaca (IC) em Portugal como rondando os 4,4% (cerca de 440 mil insuficientes cardíacos). Uma prevalência que tende a aumentar com a idade, sendo expectável que um em cada cinco adultos venha a sofrer de insuficiência cardíaca (IC) ao longo da sua vida. Que fatores explicam esta tendência de crescimento?

Sofia Coreia (SC) – É fácil percebermos que um dos principais fatores responsáveis pela tendência de crescimento da prevalência da IC se relaciona com o aumento da esperança média de vida da população. Adicionalmente, a eficácia demonstrada pelas terapêuticas atualmente disponíveis para a doença tem vindo a prolongar significativamente os anos de vida dos doentes com IC. Por outro lado, os avanços nos meios auxiliares de diagnóstico e a nossa maior atenção para os sinais e sintomas da doença permitiu-nos uma otimização progressiva do diagnóstico e uma intervenção mais precoce.

 HN – Tentar evitar a progressão da doença é um grande desafio. Quais os principais fatores de dificuldade?

 SC – Julgo que a maior dificuldade se prende com o facto de ainda não termos sido capazes de desenvolver uma verdadeira rede multidisciplinar de cuidados para o doente com IC a nível nacional, que integre as diferentes partes envolvidas no diagnóstico, tratamento e acompanhamento destes doentes, quer ao nível dos cuidados de saúde primários como a nível de consulta hospitalar diferenciada.

É fundamental que os decisores políticos e as instituições de saúde definam a IC como uma prioridade, proporcionando as condições necessárias e essenciais à abordagem transversal e protocolada destes doentes.

Podemos até inspirar-nos num exemplo de sucesso de integração de cuidados na IC a nível nacional, a Unidade integrada de Insuficiência Cardíaca (UNIICA), do Centro Hospitalar de Setúbal (CHS), para a criação de um modelo que beneficie todos os nossos doentes.

Acredito que o segredo está na capacidade de trabalharmos num modelo de “equipa partilhada e multidisciplinar”.

HN – Qual o peso da IC no número de hospitalizações?

 SC – A insuficiência cardíaca tem um impacto muito significativo no número de hospitalizações, contribuindo para cerca de 1-4% de todas as hospitalizações. É mesmo a principal causa de hospitalização em indivíduos acima dos 65 anos de idade. Além disso, é importante perceber que 1 em cada 4 destes doentes hospitalizados serão reinternados dentro do primeiro mês após a alta (aquele a que chamamos o período vulnerável). Isto constitui, como se compreende, uma importante sobrecarga económica para os sistemas de saúde a nível nacional e exige a sua organização de forma a garantir uma vigilância apertada dos doentes, sobretudo no período imediato após a alta hospitalar.

HN – Podendo apresentar-se em qualquer idade, quais são, na verdade, as faixas etárias em que a doença é mais prevalente?

SC – A prevalência da doença aumenta progressivamente com a idade, é residual antes dos 50 anos e torna-se mais prevalente após os 60-65 anos. É claramente mais prevalente na população idosa, podendo atingir cerca de 16% dos doentes com mais de 80 anos (de acordo com dados do estudo EPICA).

 HN – Os doentes compreendem corretamente as causas, sinais e sintomas da IC?

 SC – A Insuficiência Cardíaca é ainda pouco reconhecida junto dos cidadãos, apesar da sua elevada prevalência, morbilidade e mortalidade. Julgo que muitos não saberão que a taxa de sobrevivência de doentes com IC pode ser mesmo inferior à de alguns tipos de cancro, como o da mama, próstata, cólon e leucemia.

As estratégias de educação que os profissionais de saúde têm vindo desenvolver, juntamente com os meios de comunicação social, têm permitido começar a inverter esta lacuna.

No caso concreto da nossa clínica de insuficiência cardíaca, a educação do doente e seus cuidadores é uma etapa fulcral na sua abordagem e tratamento. Desenvolvemos várias estratégias que lhes permitam um esclarecimento cada vez maior e sobretudo o seu envolvimento ativo na gestão da doença – o chamado empoderamento do doente.

É fundamental que o doente compreenda que é o elemento principal da equipa de gestão da IC e do qual todos dependem para a obtenção dos resultados positivos que se pretendem (melhoria da qualidade de vida, dos sintomas e da capacidade de esforço e redução das hospitalizações e mortalidade).

Temos desenvolvido campanhas de educação, com iniciativas dedicadas aos doentes e seus familiares em ambientes descontraídos, onde realçamos a importância de adoção de estilos de vida saudáveis para o controlo da sua doença. Este ano realizamos a nossa 3ª caminhada no mês do coração e contamos, mais uma vez, com o apoio da AADIC, a associação portuguesa de apoio aos doentes com IC. Tivemos ainda a oportunidade de elaborar um guia de apoio ao doente com IC com informações úteis, desde as causas, sinais e sintomas, até recomendações e dicas para melhor controlar e gerir a sua doença. Proporcionamos igualmente uma linha telefónica de apoio, disponível nos dias úteis em horário laboral, permitindo uma comunicação rápida entre o doente/cuidador e a equipa clínica. Realço aqui o papel fundamental da enfermagem, que tem feito um trabalho notável neste processo.

HN – O SNS está organizado de forma a otimizar o acompanhamento estes doentes?

SC – Não, de todo. Este é, sem dúvida, um aspeto que merece a nossa maior atenção e esforço para otimização. As normas internacionais recomendam-nos uma abordagem multidisciplinar e sobretudo uma articulação entre os diferentes níveis de cuidados ao doente com Insuficiência Cardíaca. No entanto, na prática clínica, continuamos ainda a trabalhar em separado, sem uma verdadeira rede de cuidados estabelecida que garanta um continuum entre os cuidados de saúde hospitalares e comunitários.

HN – Como surgiu a ideia de criação de uma clínica de insuficiência cardíaca na ULSM?

 SC – A vontade de criar uma estrutura dedicada ao doente com IC tem já vários anos, bem antes de eu iniciar a minha atividade neste hospital. No entanto, ainda não tinha sido possível a sua concretização na prática clínica.

Foi-me lançado o desafio de desenvolver este projeto pela minha diretora de serviço, Prof. Doutora Cristina Gavina. Devo referir que inicialmente pareceu-me um pouco assustador e complexo, mas a sua implementação foi-se tornando cada vez mais entusiasmante. Não há nada mais gratificante que podermos contribuir para a construção de algo verdadeiramente útil para os outros, sobretudo quando é feito em equipa. Temos uma verdadeira equipa multidisciplinar e, juntos, estamos a desenvolver um projeto pela melhoria da prestação de cuidados de saúde ao doente com IC. Não tem sido um percurso particularmente fácil, as limitações logísticas são imensas, o que dificulta a realização do trabalho de forma organizada como tanto desejamos, mas continuamos resilientes, com a certeza de que conseguiremos chegar a mais e mais corações.

Dra. Sofia Correia e Enfermeira Ana Luisa

HN – Como se encontra organizada?

 SC – Como referi, temos uma equipa multidisciplinar, de abordagem ao doente com IC, em que Cardiologistas e Internistas trabalham juntos para melhor responder às exigências e complexidade crescentes do doente com IC. Da nossa equipa fazem parte também 2 Enfermeiras Especializadas em IC e 1 Enfermeira de Reabilitação.

Propusemos, desde o início, a criação de um circuito específico de abordagem especializada e multidisciplinar ao doente com IC, que permita um apoio contínuo e permanente baseado em Hospital de Dia e Consulta aberta de IC, em estreita relação com o seguimento de doentes mais estabilizados, em Consulta de IC crónica e Cuidados de Saúde Primários.

O objetivo principal é que a nossa Unidade de Apoio Permanente garanta avaliação 12h/dia, durante os dias úteis, permitindo uma resposta rápida a situações de agudização menos graves e desviando o mais possível o doente do serviço de urgência e internamento. Até ao momento, por limitações de espaço físico, só conseguimos garantir este apoio permanente em 4 períodos da semana (3 manhãs e 1 tarde). Continuamos a aguardar a atribuição de um espaço adequado à atividade clínica a que nos propomos e que permita então otimizar a abordagem ao doente com IC, de acordo com as recomendações atuais.

Apesar destes constrangimentos e limitações, desde o início da nossa atividade (finais de 2019/início de 2020) foram realizadas um total de 4474 consultas, 38% das quais na nossa consulta aberta, e cerca de 381 sessões de hospital de dia, para terapêuticas endovenosas mais específicas. Para estas terapêuticas, sobretudo administração de inotrópicos em ciclos intermitentes, que requerem vigilância mais apertada, contamos com o apoio do H. Dia de Oncologia médica que, gentilmente, nos cede as suas camas (uma vez que ainda não dispomos de espaço apropriado). Realço a importância que estes tratamentos têm demonstrado na estabilização e redução de hospitalizações dos nossos doentes mais graves. A título de exemplo, a nossa primeira doente admitida para ciclos intermitentes de levosimendan em ambulatório, em maio de 2020, deixou de ter necessidade de recurso ao serviço de urgência ou internamentos por descompensação da sua IC (comparativamente com o ano anterior em que se registaram 7 episódios de SU e 4 internamentos, consecutivos, por IC descompensada).

Até meados de abril de 2023 foram avaliados na nossa unidade cerca de 800 doentes.

HN – Qual deve ser o papel dos cuidados de saúde primários no diagnóstico e acompanhamento destes doentes?

SC – O Médico de Família tem um papel fundamental na abordagem da IC, começando desde logo pela prevenção da doença, mas também na otimização do diagnóstico precoce e seguimento de doentes estáveis.

 Na minha opinião, deveríamos apostar desde logo na melhoria do acesso a meios auxiliares de diagnóstico nos Cuidados de Saúde Primários (CSP), nomeadamente ecocardiograma completo e doseamento de peptídeos natriuréticos. Esta estratégia permitiria um diagnóstico mais precoce. Por outro lado, a articulação dos CSP com estruturas especializadas de abordagem ao doente com IC a nível hospitalar, permitirá a otimização e uniformização do tratamento e acompanhamento destes doentes. A restruturação desta rede irá traduzir-se certamente na redução de recursos ao serviço de urgência ou internamento, bem como na mortalidade associada à doença. E isso tem grande impacto na redução de custos em saúde.

 HN – Estão hoje disponíveis tratamentos eficazes para o controlo da insuficiência cardíaca?

SC – Sem dúvida! Nos últimos anos temos assistido a uma evolução extraordinária e entusiasmante no que diz respeito à terapêutica da IC, com resultados francamente positivos na melhoria prognóstica. Dispomos atualmente de vários medicamentos que nos permitem não só estabilizar a doença (reduzindo as hospitalizações e melhorando a qualidade de vida), como também prolongar os anos de vida. O importante é que os doentes compreendam esta oportunidade e cumpram as terapêuticas, que, no caso da IC com fração de ejeção reduzida, se estima que possa reduzir o risco de morte em até cerca de 73% em 2 anos.

 

HN – Quais são os principais exames utilizados para diagnosticar a insuficiência cardíaca?

 SC – O diagnóstico de IC é feito fundamentalmente com recurso ao ecocardiograma e ao estudo analítico, com doseamento de biomarcadores, nomeadamente peptídeos natriuréticos.

 HN – Para além dos profissionais de saúde, os familiares /cuidadores desempenham um papel relevante no acompanhamento destes doentes?

 SC – A IC tem um impacto emocional muito significativo no doente e o apoio de familiares/cuidadores é, sem dúvida, fundamental no seu acompanhamento. São importantes no suporte emocional, mas também no próprio controlo da doença, sendo muitas vezes fundamentais na ajuda da gestão da medicação e reforço de adesão às restantes medidas de adoção de estilos de vida saudáveis.

 HN – Existem dispositivos que permitam uma intervenção urgente em caso de descompensação da doença (do tipo Via Verde ou semelhante?)

 SC – Neste momento, ainda não existem protocolos de atuação específica, estruturados a nível nacional, para Insuficiência Cardíaca Aguda, semelhantes à Via Verde do Acidente Vascular Cerebral (AVC) e Enfarte Agudo do Miocárdio (EAM). Existem, obviamente, protocolos de atuação em regime de urgência que garantem abordagem imediata de situações mais graves e até referenciação para Centros de IC avançada quando são necessárias abordagens mais específicas, como por exemplo suporte circulatório mecânico.

 HN – A insuficiência cardíaca pode desenvolver-se em qualquer idade, mas torna-se claramente mais comum em que idade?

SC – Como referido previamente a IC torna-se progressivamente mais comum após os 60-65 anos, é residual antes dos 50 anos e mais prevalente na população idosa.

HN – Estão a organizar uma reunião dedicada à IC. Quais os temas chave que serão levados a debate?

SC – Estamos a organizar uma reunião dedicada à Insuficiência Cardíaca que tem como principal objetivo incentivar a promoção do trabalho em equipa e a uniformização de cuidados prestados ao doente com IC. É também uma oportunidade de demonstrarmos o trabalho que temos vindo a realizar, apesar das muitas limitações e constrangimentos logísticos com que nos deparamos diariamente e de, mais uma vez, reforçarmos a urgência para a melhoria da articulação em rede e das condições de trabalho.

Isto não é, de todo, algo novo. É uma preocupação que tem vindo a ser expressa ao longo dos últimos anos pelos peritos nacionais na área da IC. Apesar desta preocupação já ter sido detalhadamente descrita em documento publicado na Revista Portuguesa de cardiologia em 2017 (Pela melhoria do tratamento da insuficiência cardíaca em Portugal – documento de consenso), e de se terem, inclusivamente, proposto diversas estratégias com potencial de melhoria da articulação e utilização dos recursos disponíveis, pouco se progrediu nesta área desde então.

Assim, decidimos avançar com uma iniciativa de apelo ao trabalho em equipa na nossa ULS. Para tal, teremos o privilégio de ter connosco um convidado especial, Dr. Josep Comin-Coltet, que partilhará a sua experiência, com a apresentação de um modelo de êxito de integração de cuidados hospitalares e comunitários. Esta partilha servirá certamente de inspiração e ponto de partida para o nosso objetivo maior, de criação de uma rede de cuidados integrados ao doente com IC, que garanta um continuum entre os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários.

Será também uma oportunidade para revermos as recomendações mais atualizadas relativas a alguns temas fundamentais para a prática clínica na abordagem ao doente com IC e para tal contamos com a colaboração de diversos peritos na área, que amavelmente aceitaram o convite para participarem na nossa reunião.

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