Fundação Champalimaud: Como o cérebro após um erro melhora a tomada de decisões

4 de Agosto 2023

Um estudo realizado por uma equipa de investigadores da Fundação Champalimaud representa um importante passo para a compreensão de como os estados cerebrais podem moldar a nossa capacidade de interagir e de nos adaptarmos ao mundo que nos rodeia.

“O cérebro não é como um computador que se desliga quando não está a fazer uma determinada tarefa”, explica Alfonso Renart, o autor sénior do estudo publicado na eLife. “Há sempre uma espécie de zumbido de fundo, uma atividade de base que, por vezes, pode fazer parecer que o cérebro está a tagarelar consigo próprio”. O estudo da equipa revela a forma como essa atividade de base, o fluxo contínuo de impulsos eléctricos enviados pelos neurónios, tem impacto no comportamento e na tomada de decisões.

Como explica Renart, “quando olhamos para um único neurónio no cérebro, vemos que nunca está silencioso. Em vez disso, existe um espectro de atividades. Num extremo do espectro, os neurónios individuais alteram a sua atividade por um curto período de tempo, e, no outro extremo, comportam-se transientemente de forma independente, sem qualquer padrão real entre eles”. Isto leva a períodos de atividade sincronizada e dessincronizada nos neurónios.

Como diz Davide Reato, um dos primeiros autores do estudo, “o cérebro é como uma orquestra. Por vezes os instrumentos tocam em uníssono, outras vezes cada um toca a sua própria melodia”. Trabalhos anteriores haviam demonstrado que estes estados cerebrais, de alternância entre a sincronia e dessincronia, correspondem a diferentes estados comportamentais. Os estados de atenção concentrada estão associados à dessincronia, ao passo que durante o ócio os neurónios tendem a estar sincronizados. Estes estudos sugerem, portanto, que, em estados de dessincronização, as zonas cerebrais poderiam representar mais corretamente a informação sobre o mundo exterior e que os indivíduos seriam mais capazes de discriminar entre sinais sensoriais semelhantes, como imagens ou sons.

No entanto, desde então, surgiu um paradoxo peculiar: embora as áreas cerebrais em estados dessincronizados representem, de facto, a informação com maior precisão, os sujeitos não tomam, frequentemente, melhores decisões percetivas durante esses estados.

Para compreender a solução deste quebra-cabeças e a forma como o zumbido de fundo do cérebro afeta a perceção, a equipa concebeu uma experiência de tomada de decisões auditivas com ratinhos. Os roedores foram treinados para distinguir entre sons de alta e de baixa frequência, estando cada som associado a uma resposta diferente.

Raphael Steinfeld, outro dos primeiros autores do estudo, explica a tarefa: “Consoante o som que tocávamos, o animal tinha de reportar a uma de duas portas de resposta, a da direita ou a da esquerda. E pusemos o animal a realizar esta tarefa enquanto registávamos a sua atividade neuronal”. A equipa registou neurónios no córtex, a camada exterior do cérebro e, supostamente, a sede das funções cognitivas de ordem superior, como a aprendizagem, a memória e a atenção.

“Gravámos no córtex auditivo, que é a parte do córtex que processa o que ouvimos”, continua Steinfeld. “Um dos desafios que enfrentámos foi a necessidade de registar muitos neurónios ao mesmo tempo. Registar a atividade de muito poucos neurónios de cada vez torna muito difícil inferir a sincronia da população de neurónios. Além disso, foram necessários muitos meses para que cada ratinho desempenhasse a tarefa suficientemente bem para podermos começar a registar. No entanto, uma vez ultrapassados estes desafios, estávamos em condições de colocar a questão crucial: será que os animais tomam melhores decisões sobre a natureza de um som quando o córtex está mais dessincronizado imediatamente antes de o som ser reproduzido?

Davide Reato retoma a história: “No início, verificámos que o estado de sincronização não afetava o desempenho, o que corresponde ao enigma que prevalece na literatura. Mas depois reparámos que, após cometer um erro, a escolha seguinte do animal tinha mais probabilidades de ser correta, o que nos levou a investigar se o efeito do estado do cérebro na escolha dependia do sucesso do animal na tentativa anterior. Quando analisámos esta questão, verificámos um padrão claro: a dessincronização da atividade de base do córtex antes da apresentação do som conduzia, de facto, a um desempenho mais preciso, mas apenas se o ratinho tivesse cometido um erro na tentativa anterior. Por outras palavras, se as células do córtex auditivo tocarem cada uma a sua música depois de um erro, em vez de tocarem em uníssono, a decisão seguinte do rato é mais precisa”.

Como explica Renart, “estes resultados fornecem uma explicação possível para o puzzle. É evidente que os estados dessincronizados nem sempre estão associados a melhores escolhas, mas por vezes estão. O facto do sucesso da escolha anterior determinar se estão ou não, fez-nos pensar nas diferentes formas como abordamos um desafio. Se o problema for realmente difícil, concentramos toda a nossa atenção nos aspetos relevantes para sermos bem sucedidos. No entanto, certas tarefas, normalmente repetitivas, nas quais adquirimos um certo nível de competência, podem ser realizadas muito bem sem uma atenção concentrada. As pessoas referem-se a esta situação como estando “na zona”, ou “em fluxo”. Durante estes estados de fluxo – como no desporto, nos jogos de vídeo ou na música – os indivíduos estão tão absorvidos na sua tarefa que, muitas vezes, relatam
uma sensação de distanciamento da sua consciência”.

“Pensamos que o que pode estar a acontecer é que os ratinhos geralmente executam estas tarefas laboratoriais num estado de fluxo, uma vez que as tarefas são muito repetitivas e os animais tornaram-se altamente competentes na sua execução. No entanto, os erros quebram o fluxo, e pensamos que isto altera fundamentalmente a forma como o cérebro controla o comportamento. Quando um erro é cometido, é como se o cérebro mudasse de faixa na autoestrada da informação, recrutando subitamente o córtex auditivo para o ajudar a navegar na tarefa. Nessa altura, o estado do córtex auditivo influencia de facto o comportamento do animal, de modo que, se o córtex auditivo estiver num estado dessincronizado após um erro, o animal tem um melhor desempenho na tarefa. É como se o passo em falso do cérebro funcionasse como uma chamada de atenção e, em resposta
a isso, o estado dessincronizado do córtex auditivo aguça a capacidade do animal para discriminar os estímulos”.

As descobertas dos investigadores sugerem que, em estados de fluxo de elevado desempenho e automaticidade, as áreas cerebrais de ordem superior, como o córtex auditivo, podem estar menos envolvidas, até ser cometido um erro. Para o futuro, a equipa planeia investigar mais aprofundadamente a sua teoria. “O que esta teoria tem de bom”, diz Steinfeld, “é o facto de ser muito testável. Se interferirmos com a atividade do córtex auditivo e virmos um efeito maior na qualidade das decisões que o animal toma após as tentativas de erro, isso apoiará a nossa teoria”.

As descobertas da equipa não só reformulam a nossa compreensão da interação entre o estado de sincronização e a precisão das decisões subsequentes, como também podem abrir novas vias de compreensão sobre as condições em que a sincronia neural ou a adaptação ao erro podem ser perturbadas, como em certas doenças neurológicas ou psiquiátricas. Além disso, os resultados poderão inspirar novas abordagens no domínio da IA e da aprendizagem automática, em que o conceito de aprender com os erros é um princípio fundamental.

Parece que o zumbido constante dos nossos neurónios pode não ser o murmúrio confuso de um cérebro a falar sozinho, mas sim uma sinfonia complexa que está continuamente a moldar a nossa perceção do ambiente e o nosso desempenho. Como Steinfeld, uma violinista de renome, comenta “é algo em que pensar da próxima vez que tocar uma nota errada”.

PR/HN/RA

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