Carlos Tavares: “O fisioterapeuta não dá mais anos de vida, mas dá mais vida aos anos”

09/08/2023
No Dia Mundial da Fisioterapia, o HealthNews conversou com Carlos Tavares, fisioterapeuta, professor (Escola Superior de Saúde Jean Piaget e Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra) e membro filiado do KinesioLab, sobre prevenção e recuperação de doenças ósseas.

“Na prevenção, na literacia, temos um papel importante. E é fundamental procurar profissionais que estejam devidamente habilitados. É fundamental colocarmos a nossa saúde nas mãos daqueles que têm realmente condições e conhecimento suficiente para poder ajudar. O fisioterapeuta não dá mais anos de vida, mas dá mais vida aos anos”, disse Carlos Tavares.

HealthNews (HN)- Portugal é um país envelhecido, cada vez mais. As doenças ósseas, por sua vez, estão associadas ao envelhecimento. Qual o papel do fisioterapeuta aqui, na gestão das doenças ósseas numa sociedade envelhecida?

Carlos Tavares (CT)- De facto, vivemos numa realidade em que as pessoas estão a envelhecer cada vez mais. Por outro lado, existem doenças que também começam a aparecer precocemente, devido ao estilo de vida adotado atualmente, devido aos elevados níveis de sedentarismo.

O fisioterapeuta tem um papel importante não só no tratamento, mas também na prevenção, começando por atuar na literacia em saúde, dando à população ferramentas que permitam prevenir estas condições. De que forma? Com a adoção de estilos de vida saudáveis, adoção de uma vida mais ativa que privilegie a atividade física, ligeira, moderada ou mais intensa, dependendo das condições. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o ideal será que cada um de nós faça pelo menos 150 minutos de atividade física moderada por semana – e isso será um bom caminho para prevenir esse tipo de condições.

Quando já estão presentes, no caso da osteoporose, da artrose, da osteoartrite que é, inclusivamente, o tema do Dia Mundial da Fisioterapia para este ano, o terapeuta tem um papel muito importante, uma vez que estas condições se traduzem em diminuição da mobilidade, da força, aparecimento de dor, perda de função. Então, a esse nível, o fisioterapeuta poderá, em conjunto com o trabalho de outros profissionais de saúde, em equipa, trabalhar na melhoria da mobilidade, da força; a nível da dor, através de terapias manuais, de agentes eletrofísicos, de exercícios terapêuticos; e uma coisa muito importante é precisamente capacitar as pessoas para gerirem o seu problema de saúde.

Normalmente são condições que não têm uma cura, isto é, a pessoa vai ter de aprender a viver com a sua condição. Nesse aspeto os fisioterapeutas têm um papel muito importante, tentando sempre focar nos aspetos positivos e dando algum ânimo ao doente para que ele consiga viver com o seu problema da melhor forma possível, com a melhor qualidade de vida possível.

HN- A importância do vosso papel é amplamente reconhecida, na prevenção e na reabilitação, pela população em geral e, mais especificamente, na saúde?

CT- A importância do papel do fisioterapeuta na prestação de cuidados de saúde tem vindo a crescer nas últimas décadas. Se anteriormente, há 30 ou 40 anos, o fisioterapeuta era visto como um mero executor de técnicas, neste momento é cada vez mais visto como um profissional que integra uma equipa multidisciplinar, sendo que o seu corpo de saberes lhe confere capacidades e competências para poder atuar especificamente nestas áreas.

O reconhecimento por parte da população é cada vez maior, há uma procura cada vez maior pelos cuidados de fisioterapia, assim como também ao nível médico acaba por haver cada vez mais um trabalho de equipa, nomeadamente com reumatologistas e ortopedistas, no sentido de dar as melhores condições de vida possíveis aos utentes. Isso é o mais importante. Tem-se vindo a focar cada vez mais o doente, no sentido de lhe poder devolver alguma qualidade de vida.

HN- Em Portugal, o acesso está facilitado? O investimento é o necessário? Como é que funciona a organização e o acesso dos doentes?

CT- Há um longo caminho a percorrer a esse nível. A minha perceção é que existem assimetrias acentuadas, quer assimetrias geográficas – a oferta de fisioterapia numa cidade ou aldeia do interior é completamente diferente da oferta que existe nas grandes cidades e isso é algo que deveria ser combatido –, quer entre o público e o privado. Infelizmente, o fisioterapeuta ainda não tem uma presença minimamente aceitável a nível dos centros de saúde. Deveria haver mais fisioterapeutas em centros de saúde. É uma das promessas do nosso Governo que esperamos que seja cumprida.

Temos centros de saúde em que não existe um único fisioterapeuta, e nestas doenças – e noutras também – a fisioterapia tem uma importância que é insubstituível, não desvalorizando, como é óbvio, o papel de todos os outros profissionais. Mas faltaria ali mais um profissional para poder completar a qualidade dos cuidados prestados.

A nível hospitalar também existe carência de fisioterapeutas. Se formos ver o rácio, é muito baixo, o que obriga depois as pessoas a recorrerem ao sistema privado. No sistema privado, acabamos por ter, também, duas realidades distintas. Temos um sistema privado baseado no conceito da medicina física e reabilitação que, na verdade, acaba por não ser o ideal, tendo em conta que este sistema trabalha basicamente com o sistema nacional de saúde e com outros subsistemas de saúde que acabam por não valorizar economicamente este tipo de atuações. Os valores pagos são muito baixos, o que implica tratamentos com muitos doentes por hora. A outra realidade a nível do privado começou a proliferar nos últimos anos. São gabinetes ou clínicas mais pequenas em que existe uma abordagem de um doente por hora. Acaba por ter um tratamento mais personalizado, só que há aqui um problema que cria alguma discriminação, que é o fator económico. Se as pessoas não tiverem poder de compra, não conseguem ter acesso a este tipo de intervenções.

Portanto, existem algumas assimetrias que nem sempre favorecem a população no que respeita à procura dos cuidados de saúde. Eles existem, existem cuidados diferenciados, só que nem todos conseguem chegar a eles, por motivos económicos, geográficos ou, ainda, por falta de conhecimento. Embora estejam melhores os níveis de literacia em saúde, ainda há um trabalho que nós, profissionais de saúde, temos de fazer no sentido de mostrar às populações o que é que são as patologias, quais são as consequências, o que é que se pode fazer, como é que a pessoa pode gerir aquele seu problema.

HN- A falta de literacia é mais evidente nos idosos. Alguns vivem sozinhos e acabam por deixar arrastar os problemas. Entre os mais jovens há outro tipo de problemas de literacia em saúde? A opção de recorrer a outro tipo de profissionais ou tratamentos e a desinformação são problemas na população mais jovem? Dificulta o vosso trabalho?

CT- Como diz, a população mais idosa acaba por ter um nível de literacia inferior à população mais jovem. No entanto, para os jovens, o facto de existir tanta informação acaba por criar desinformação. Quando existe um problema de saúde, é frequente recorrermos ao “Dr. Google”. O “Dr. Google”, muitas vezes, cria-nos problemas que não existem, ou então a interpretação que as pessoas fazem não é a mais indicada. Penso que os jovens têm mais conhecimento acerca das suas condições de saúde, mas nem sempre é fundamentado ou corresponde à realidade.

Quanto à procura do profissional de saúde, se isso favorece ou não a procura do fisioterapeuta… Temos aqui uma realidade que tem estado em mudança, ou pretende-se que mude, e é por isso que se regulamenta através da Ordem dos Fisioterapeutas a prática da fisioterapia. No século XXI, em Portugal, ainda existem profissionais que não são fisioterapeutas a exercer pseudofisioterapia. Isto provoca alguma desconfiança por parte da população, quando um indivíduo procura um profissional que não é fisioterapeuta, mas supostamente faz fisioterapia. O que normalmente acontece é a ausência dos resultados esperados, porque, como é natural, qualquer profissão, seja fisioterapeuta, médico, enfermeiro, nutricionista, deve ter por base uma formação que assente em ciência e em evidências. Ora, se um indivíduo que não é fisioterapeuta supostamente faz fisioterapia, não se vai obter os resultados desejados, levando os doentes, em alguns casos, a associar a fisioterapia à ausência de resultados.

Atenção, é preciso perceber se a pessoa que oferece o serviço de fisioterapia é um fisioterapeuta credenciado. É um problema que ainda existe no nosso país. Confesso que, na minha perspetiva, já foi pior. Inclusivamente as pessoas cada vez mais vão à procura de resultados. Embora ninguém faça milagres (há condições nas quais, pela sua natureza, não se consegue dar resposta), a verdade é que começam a perceber que, realmente, a intervenção do fisioterapeuta credenciado é diferente, com melhores resultados e maior impacto na condição de saúde.

Toda a informação é útil, é vantajosa. Nota-se que há uma melhoria na literacia da população mais jovem. Mas depois temos esta questão que cria uma entropia. Às vezes cria uma ideia errada daquilo que nós realmente conseguimos fazer.

HN- Quais são os maiores desafios para os fisioterapeutas neste grupo de doentes?

CT- Embora seja de facto uma questão que envolve um grande número de patologias e de doentes com características muito diferentes, tanto na osteoporose quanto na osteoartrite, ou em outra situação em que há lesão óssea, o grande desafio do profissional é fazer ver ao doente que o resultado da intervenção não depende exclusivamente do profissional de saúde. Muitas vezes a pessoa vai à procura do fisioterapeuta no sentido de “vai-me dar a pílula mágica e eu vou ficar curado”, e isso não acontece. Aquilo que eu digo aos meus doentes é que os resultados dependem do seu envolvimento e empenho em todo o processo, desde a avaliação à implementação do programa de tratamento.

O principal desafio é sermos capazes de transmitir ao doente a importância deste envolvimento no processo de recuperação, de modo que haja uma adesão adequada, nomeadamente aos exercícios que são prescritos e que é importante que mantenham ao domicílio. Falando por exemplo na questão dos auxiliares de marcha, um dos grandes desafios nalgumas pessoas é precisamente aceitarem usá-los. Há pessoas com alguma idade que se recusam a usar uma canadiana, uma bengala ou um andarilho porque sentem que aquele auxiliar de marcha as inferioriza, faz com que sejam vistas pela sociedade como pessoas com menos capacidade. Então preferem andar sem auxiliar de marcha mesmo correndo o risco de queda. O desafio é que o fisioterapeuta explique àquela pessoa que sofrer uma queda pode levar a danos sérios, inclusivamente a morte. É importante que o fisioterapeuta explique àquela pessoa que usar o auxiliar de marcha vai diminuir esse risco e, com isso, a pessoa vai poder ter uma melhor qualidade de vida. Acho que este é o principal desafio: mais do que tratar, é envolver a pessoa no tratamento, uma vez que é ela o foco de todo o processo.

HN- Uma última mensagem com recomendações sobre prevenção e recuperação de doenças ósseas.

CT- Em primeiro lugar, uma ideia chave: o fisioterapeuta não é o profissional que apenas trata. O fisioterapeuta ajuda a prevenir, o fisioterapeuta ajuda a que o utente perceba o problema. A principal mensagem é, sempre que existe alguma questão associada a uma condição de saúde e de doença óssea, o fisioterapeuta pode ajudar a pessoa a perceber quais as consequências associadas, quais são as principais limitações, o que é que a pessoa poderá fazer para conseguir viver com aquele problema, minimizando as consequências do mesmo.

De igual modo, o fisioterapeuta pode ajudar a prevenir o aparecimento de problemas, e aqui insere-se a prevenção de quedas, ou então pode ajudar a que aquela condição não evolua tão rapidamente quanto seria expectável se a pessoa não fizesse qualquer tipo de intervenção. Isto é, colocar um travão à evolução da patologia. A pessoa irá continuar com osteoporose, a pessoa irá continua com osteoartrite, mas é fazer com que evolua de forma mais lenta. Desta forma, damos melhor qualidade de vida à pessoa. Se a pessoa já tem diagnóstico de uma destas condições, a verdade é que pode atuar no que respeita às consequências da mesma, à diminuição da mobilidade, ao défice de equilíbrio, à perda de força, à perda de funcionalidade, na questão da dor. Aqui o fisioterapeuta também poderá atuar; mas não é apenas no tratamento, é em todo este percurso.

Na prevenção, na literacia, temos um papel importante. E é fundamental procurar profissionais que estejam devidamente habilitados. É fundamental colocarmos a nossa saúde nas mãos daqueles que têm realmente condições e conhecimento suficiente para poder ajudar. O fisioterapeuta não dá mais anos de vida, mas dá mais vida aos anos.

HN/RA

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

Daniel Ferro: Retenção de Médicos no SNS: Desafios e Estratégias

Daniel Ferro, Administrador Hospitalar na USF S. José, apresentou no 10º Congresso Internacional dos Hospitais um estudo pioneiro sobre a retenção de profissionais médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). A investigação revela as principais causas de saída e propõe estratégias para melhorar a retenção de talentos.

Inovação Farmacêutica: Desafios e Oportunidades no Acesso a Novos Medicamentos

A inovação farmacêutica enfrenta desafios significativos no que diz respeito ao acesso e custo de novos medicamentos. Num cenário onde doenças como Alzheimer e outras condições neurodegenerativas representam uma crescente preocupação para os sistemas de saúde, o Professor Joaquim Ferreira, Vice-Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, abordou questões cruciais sobre o futuro da inovação terapêutica, os seus custos e o impacto na sociedade durante o 10º Congresso Internacional dos Hospitais, uma iniciativa da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hopitalar (APDH).

Desafios e Tendências na Inovação Farmacêutica: A Perspetiva de Helder Mota Filipe

O Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Helder Mota Filipe, abordou os principais desafios e tendências na inovação farmacêutica durante o 10º Congresso Internacional dos Hospitais. A sua intervenção focou-se na complexidade de garantir o acesso a medicamentos inovadores, considerando as limitações orçamentais e as mudanças demográficas e epidemiológicas em Portugal

Carlos Lima Alves: Medicamentos Inovadores: O Desafio do Valor Sustentável

Carlos Lima Alves, Médico e Vice-Presidente do Infarmed, abordou a complexa questão dos medicamentos inovadores no 10º Congresso Internacional dos Hospitais, promovido pela Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar (APDH). A sua intervenção centrou-se na necessidade de equilibrar o valor dos medicamentos com os custos associados, destacando a importância de uma avaliação rigorosa e fundamentada para garantir que os recursos financeiros sejam utilizados de forma eficaz e sustentável.

Projeto Pioneiro em Portugal Aborda Gestão de Resíduos na Diabetes

A Unidade Local de Saúde de Matosinhos apresentou um projeto inovador sobre a gestão de resíduos resultantes do tratamento da diabetes, na 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde. O projeto “Diabetes e o meio ambiente” visa sensibilizar e capacitar pacientes e famílias para a correta separação de resíduos, contribuindo para a sustentabilidade ambiental.

MAIS LIDAS

Share This