A Unidade de Saúde Familiar da Cova da Piedade (USF Cova da Piedade) decidiu inovar durante a pandemia de Covid-19 como forma de melhorar a qualidade e capacidade de atendimento aos seus utentes. Foi da cabeça do Dr. Pedro Pacheco, Assistente Graduado de Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde Familiar da Cova da Piedade, que surgiu a ideia de recorrer a um serviço disponibilizado pela Amazon Web Services (AWS), o Amazon Connect. A máquina de atendimento automático foi responsável por uma diminuição de 70% das chamadas efetuadas e facilitou aos médicos a interação com os doentes que ligavam devido a agravamento de sintomas. Hoje, o sistema desenvolvido por parte da USF Cova da Piedade junto da AWS já não está em utilização.
- Como surgiu a ideia de introduzir um sistema do género (Amazon Connect)?
Quando começámos a acompanhar a situação do surto de Sars-Cov-2 na China, em Wuhan, e com o desenrolar dos acontecimentos cedo se percebeu que Portugal não iria passar incólume. A declaração de Pandemia por parte da OMS foi uma inevitabilidade, sendo já percecionado que o problema há muito não estava contido em poucas regiões do Mundo.
Nesta altura, e com a iminência de termos de tomar medidas mais drásticas de confinamento apercebi-me que seria importante criar condições para mantermos uma proximidade maior com os utentes.
As nossas unidades de saúde (a nível local e nacional) não estão preparadas ou otimizadas para dar resposta aos contactos telefónicos dos doentes. Sempre foi um “calcanhar de Aquiles” do SNS. É certo que têm surgido imensas ferramentas tecnológicas, aplicações, portal de utentes, etc., mas a literacia informática da maior parte dos nossos utentes não lhes permite tirar partido direto destas ferramentas.
Assim, pensei que numa fase inicial seria importante que a unidade onde trabalho – USF Cova da Piedade – pudesse prestar um serviço de maior proximidade nesta altura de pandemia disponibilizando um atendimento telefónico eficiente. Na altura multiplicaram-se os apoios de inúmeras empresas aos profissionais de saúde e algumas ferramentas pagas até então foram disponibilizadas gratuitamente no âmbito da Pandemia. Este esforço de todos os sectores de ajudar na pandemia levou a que procurasse alguém que estivesse a apoiar os prestadores de saúde nesse sentido.
Pesquisando na internet encontrei um formulário da Amazon Web Services Portugal que permitia que solicitasse apoio direto na implementação de um sistema de call-center, de forma a melhorar a nossa performance de teletrabalho. Inicialmente pensei na solução para apoiar diretamente a nossa USF e o contacto telefónico com os nosso doentes, mas cedo me apercebi que a criação dos ADC – Atendimentos Doença Covid-19, e as tarefas daí resultantes no acompanhamento dos doentes com suspeita de Covid-19 se iria tornar num “fardo” bem maior para os médicos de família. Desenvolvemos então um sistema de call-center apoiado num fluxograma clínico que permitia o atendimento diferenciado por administrativos, enfermeiros e médicos. Estava baseado num sistema de atendimento automático que dirigia as chamadas para cada um dos grupos profissionais, consoante o tipo de problema de quem nos ligava. Nalguns casos evitava o contacto com o operador, dirigindo para respostas automáticas a algumas questões. Este sistema que desenvolvemos com o apoio da AWS e AWS Connect era ainda mais inovador por ser totalmente na “cloud”, e sem necessidade de compra de equipamentos físicos.
Durante os primeiros meses da pandemia, os doentes tiveram medo de ir à unidade de Saúde e precisávamos de efetuar inúmeras teleconsultas, renovar prescrição de medicação, tirar dúvidas clínicas, etc. A acrescentar a este facto e à necessidade de controlo de todas as suas doenças crónicas, os médicos de família passavam agora a ter de ligar a todos os doentes suspeitos de Covid-19 numa base diária e até aos 14 dias, independentemente dos sintomas apresentados. (Norma 004/2020 da DGS).
Esta abordagem parecia-me desadequada, porquanto representava um trabalho enorme, com todas as limitações que tínhamos nas nossas já débeis linhas telefónicas, e que iriamos ocupar ainda mais, para ligar a pessoas ligeiramente sintomáticas e que estavam no domicílio em isolamento com quadros ligeiros de doença. Para se perceber melhor o quão infrutífero se tornava esta situação, seria o mesmo que desenhar um sistema de prevenção do Enfarte Agudo de Miocárdio (EAM) por via telefónica – os cardiologistas teriam então de ligar diariamente a todos os doentes de risco para saber se estão a desenvolver queixas compatíveis com um EAM. Resultado: estaria a ligar a milhares de pessoas para identificar potencialmente 2 ou 3 casos de doença, e poderia estar a errar por minutos ou horas o aparecimento de um evento grave. Para além disso estaria ainda a consumir um recurso humano precioso, pelo número de horas que este sistema implicaria.
Da mesma forma, ligar diariamente a doentes com doença ligeira Covid-19 no domicílio parecia-me muito oneroso em termos de tempo e pouco eficaz, porque o que nós pretendíamos era identificar doentes que estivessem com agravamento dos sintomas, estando no domicílio.
Portanto, o que eu precisava de ter era um serviço que lhes permitisse, de forma ágil, ter um médico do outro lado do telefone que os pudesse orientar rapidamente e tivesse acesso ao seu histórico de doença Covid-19. Esta foi a base para alterarmos o protocolo de funcionamento do nosso follow-up a doentes Covid-19, e tornou-se no fulcro do desenvolvimento do call-center da AWS criado.
- Sente que existem desvantagens na utilização deste sistema? Talvez ao nível de situações como a interação pessoal?
Não existe nenhuma desvantagem neste sistema porque na realidade ele aproximava as pessoas com mais necessidades dos clínicos garantindo atendimento de “proximidade” e diferenciado, e libertando os médicos de uma tarefa supérflua e pouco eficaz que era ligar a dezenas (talvez centenas) de doentes pouco sintomáticos que se encontravam em casa. As pessoas mantiveram a sensação proximidade e confiança porque quem as atendia tinha acesso ao seu histórico e estava a par da sua situação clínica. Par além disso, tinham um atendimento célere, e eficaz.
- Como é que os pacientes responderam à utilização deste sistema de atendimento automático?
Com muito agrado, porque tinham possibilidade de discutir questões clínicas e ao mesmo tempo esclarecer dúvidas sobre locais de realização de testes, e ainda resolver à distância problemas como justificação de faltas laborais pelo isolamento determinado
- Alguma vez o sistema falhou no seu propósito, ficou aquém das expectativas ou necessitou de passar a chamada para um operador humano?
O sistema pressupunha algumas respostas de áudio automáticas, mas foi desenhado com o intuito primordial de dar resposta imediata, das 8-20h a qualquer pessoa que tivesse sido observada no ADC com suspeita de doença Covid-19 e que tivesse agravamento de sintomas. Esse era o grande foco. Por isso tínhamos duas equipas no ACES de Almada Seixal constituídas por um mínimo de dois elementos de cada grupo profissional designadas para esta tarefa.
- Sei que não estão a utilizar a tecnologia de momento, porquê?
Desde o início que sabíamos que este apoio seria limitado no tempo, existindo sempre a possibilidade de extensão. Utilizámo-lo na pior fase da pandemia, quando tivemos centenas de chamadas todos os dias e estamos prontos para começar a utilizá-lo novamente se necessário e se o número de chamadas telefónicas aumentar, e se for essa a vontade da Direção Executiva.
- Sente que a tecnologia poderia ser utilizada em definitivo, ou até noutras áreas da Unidade de Saúde?
No âmbito do acompanhamento dos doentes com suspeita de COVID, seguramente. Na altura apresentei os dados após quatro semanas de implementação do call-center nos serviços da AWS Cloud, e na altura conseguimos reduzir o número de chamadas efetuadas pelos médicos de uma média de 744 chamadas por dia (relembro que era efetuadas a doentes pouco sintomáticos) para 211. Uma redução de 71% do trabalho dos profissionais, mantendo a segurança e garantia de que os doentes nos podiam contactar. Em média passámos a receber 15 chamadas por dia de doentes com dúvidas clínicas ou devido ao agravamento de sintomas. Nesta avaliação ao final de 1 mês, apenas tinha sido necessário enviar dois utentes ao ADC para nova observação clínica por agravamento de sintomas.
Na altura tínhamos 380 doentes no nosso ACES em vigilância, o mesmo era dizer que precisávamos de ligar a 380 doentes diariamente, e a nível nacional o número era de 300.000 doentes! Reduzir para 70% este número de contactos a nível nacional, teria tido um impacto enorme na disponibilidade dos clínicos para outras tarefas.
Ao dia de hoje temos cerca de 21.000 casos activos em Portugal, mas seguramente muitos mais em vigilância pelos médicos de família (esse número deixou de ser divulgado). Podemos assim ter uma ideia do esforço que está a ser pedido aos cuidados de Saúde Primários – reduzir 70% poderia fazer toda a diferença.
Entrevista de João Marques
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