A Síndrome de Apneia Hipopneia do Sono (SAHS) é uma condição médica que afeta uma parte significativa da população portuguesa e mundial. Esta patologia está associada a complicações graves, tanto a nível cardiovascular como neurocognitivo, podendo resultar em acidentes de viação e laborais, com consequências potencialmente fatais. Apesar da existência de um tratamento eficaz, que consiste na utilização de CPAP (Continuous Positive Airway Pressure) noturno, o diagnóstico e o tratamento desta condição enfrentam sérios desafios em Portugal.
O principal problema reside nas longas listas de espera para o diagnóstico e tratamento da SAHS, que em alguns hospitais portugueses podem chegar aos três anos. Esta situação leva a um subdiagnóstico generalizado, o que, por sua vez, resulta em complicações cardiovasculares e neurocognitivas futuras para os doentes afetados. A raiz deste problema encontra-se no modelo de abordagem nacional atual, que está excessivamente centralizado nos hospitais.
No modelo vigente, o médico de família, ao suspeitar de problemas de sono primários, faz uma referenciação para as unidades hospitalares. Estas unidades têm a responsabilidade de realizar o diagnóstico, o tratamento e o acompanhamento, tudo a nível hospitalar. Este processo centralizado tem-se mostrado ineficiente e incapaz de dar resposta às necessidades da população.
É neste contexto que surge o projeto “Innobics-SAHS: Inovação no diagnóstico e tratamento da Síndrome de Apneia Hipopneia do Sono”, apresentado pela Dra. Paula Gonçalves Pinto, da Unidade Local de Saúde de Santa Maria. Este projeto propõe uma solução inovadora para alterar a realidade atual através de uma abordagem completamente nova no diagnóstico e tratamento da SAHS.
O “Innobics-SAHS” é um projeto internacional, com uma versão semelhante a decorrer em Espanha, na Catalunha, mais especificamente em Girona. O projeto recebeu um financiamento significativo da EIT Health, no valor de cerca de 700 mil euros para cada hospital participante. Os objetivos estabelecidos são ambiciosos: reduzir entre 40% a 60% as referências hospitalares e diminuir as listas de espera para diagnóstico e tratamento para menos de um mês, um contraste marcante com a situação atual em que os tempos de espera podem, em alguns casos, chegar aos três anos.
A operacionalização do projeto no terreno centrou-se na autonomização dos cuidados de saúde primários em todos os procedimentos diagnósticos e terapêuticos relacionados com a SAHS. Para alcançar este objetivo, foi desenvolvido um algoritmo clínico em parceria entre Portugal e Espanha, e criada uma comunidade virtual sobre sono no hospital, suportada por uma plataforma digital de integração de cuidados.
Um aspeto crucial do projeto foi a formação intensiva dos técnicos, tanto no hospital da unidade virtual como nos cuidados de saúde primários, em todos os procedimentos relacionados com o diagnóstico e tratamento da SAHS. Esta formação foi essencial para garantir a qualidade e a eficácia do novo modelo de abordagem.
O percurso do doente no novo modelo é significativamente diferente do tradicional. Quando um médico de família suspeita de apneia do sono, em vez de referenciar diretamente para o hospital, encaminha o doente para um técnico de sono especializado, que está sediado nos próprios cuidados de saúde primários. Este técnico realiza uma avaliação inicial, que inclui o preenchimento do questionário STOP-Bang, um instrumento validado para a triagem da SAHS.
Se o resultado do questionário STOP-Bang for igual ou superior a 3, indicando uma alta probabilidade de SAHS, o processo de diagnóstico avança imediatamente. O técnico de sono preenche o consentimento informado e realiza um questionário clínico mais detalhado, cujos dados são integrados numa plataforma digital. Nesse mesmo dia, o doente recebe um equipamento de estudo do sono para levar para casa.
No dia seguinte, o doente ou um familiar devolve o equipamento, e os dados são descarregados na plataforma digital. Estes dados são então analisados manualmente na unidade virtual de sono do hospital. Após a análise, um médico pneumologista da unidade virtual realiza uma teleconsulta com o doente para explicar os resultados. Se forem identificados critérios para SAHS, o médico prescreve o tratamento com CPAP, cuja adaptação será feita no domicílio do doente através de uma empresa de cuidados respiratórios domiciliários.
Após a teleconsulta, o doente tem uma consulta agendada no centro de saúde com o técnico de sono. Nesta consulta, é explicado ao doente que ele estará sempre acompanhado por um médico da unidade virtual de sono do hospital, e que o técnico de sono será o seu principal interlocutor, representando o rosto da unidade virtual no centro de saúde. Toda a informação clínica relevante é também enviada ao médico de família do doente, garantindo uma continuidade de cuidados e uma comunicação eficaz entre todos os profissionais envolvidos.
A Dra. Paula Gonçalves Pinto identificou três pilares fundamentais que permitiram alcançar ganhos significativos de eficiência com este projeto. O primeiro pilar foi a criação de uma unidade virtual de sono que opera remotamente, fazendo a interface com os técnicos de sono que estão nos cuidados de saúde primários. Esta unidade virtual gere todo o processo de diagnóstico e tratamento, dando suporte aos profissionais no terreno.
O segundo pilar foi a integração digital de cuidados entre os cuidados de saúde primários e o hospital. Esta integração permite ultrapassar um dos maiores desafios tradicionalmente enfrentados por estas duas estruturas: a comunicação eficiente e a transmissão de dados. A plataforma digital desenvolvida para o projeto facilita esta integração, permitindo uma troca de informações rápida e eficaz entre todos os profissionais envolvidos nos cuidados do doente.
O terceiro pilar foi a implementação efetiva no terreno. O projeto envolveu o Hospital de Santa Maria, onde está sediada a unidade física de sono e ventilação não invasiva, e cinco centros de cuidados de saúde primários. Em termos de recursos humanos, a maioria dos profissionais está baseada no hospital, incluindo quatro pneumologistas e duas técnicas de cardiopneumologia especializadas em sono. Adicionalmente, foram contratadas, com o financiamento do projeto, quatro técnicas de sono que estão sediadas nos centros de saúde.
Os resultados preliminares do projeto, referentes ao período de setembro de 2023 a abril de 2024, são extremamente promissores. Neste período, foram realizados 914 estudos de sono. Um dado particularmente relevante é a taxa de diagnóstico de apneia do sono, que atingiu os 87%, um valor considerado muito elevado. Destes casos diagnosticados, 55% eram casos moderados a graves.
O impacto do projeto na redução das referenciações hospitalares foi significativo, com 107% dos casos evitando a necessidade de encaminhamento para o hospital. Isto representa uma mudança radical na forma como os casos de SAHS são geridos, aliviando significativamente a pressão sobre os serviços hospitalares.
Outro aspeto crucial foi a redução drástica nos tempos de espera. O tempo médio até à realização do exame de sono foi de apenas 7,4 dias, e o tempo médio até à instituição do tratamento foi de 31,8 dias. Estes números contrastam fortemente com os tempos de espera anteriores, que podiam chegar a três anos em alguns casos.
O novo modelo proporciona um percurso do doente em proximidade, centrado no seu centro de saúde, completamente ambulatório, com maior eficiência e efetividade. Além de reduzir significativamente as listas de espera para diagnóstico e tratamento, o projeto também conseguiu uma redução significativa de custos.
Uma análise comparativa entre o modelo convencional e o modelo “Innobics”, baseada na contabilidade analítica do custo da consulta do serviço de ORL do Centro Hospitalar do Porto do ano anterior (2023), revelou um ganho financeiro de aproximadamente 400.000 euros com este projeto.
O impacto do projeto “Innobics-SAHS” vai além dos números. Representa uma verdadeira mudança de paradigma no diagnóstico e tratamento da apneia do sono em Portugal. O processo passou a ser completamente ambulatório, com um impacto organizacional significativo no acesso aos cuidados de saúde. Para o doente individual, os ganhos em saúde são substanciais, com melhorias na qualidade de vida e redução dos riscos de morbilidade e mortalidade, graças à rapidez com que o diagnóstico e o tratamento são agora realizados.
A sustentabilidade do projeto é um dos seus pontos fortes. Uma vez estabelecida a infraestrutura inicial, a manutenção do modelo requer apenas a continuação da contratação dos técnicos de sono nos cuidados de saúde primários. Este aspeto torna o projeto não só eficaz, mas também economicamente viável a longo prazo.
Um dos objetivos secundários do projeto, desde a sua conceção, foi avaliar a sua replicabilidade e transferibilidade a nível europeu. O facto de o projeto ter sido implementado simultaneamente em Portugal e Espanha já demonstra a sua capacidade de adaptação a diferentes contextos nacionais. A Dra. Paula Gonçalves Pinto considera o “Innobics-SAHS” como um projeto piloto nacional de integração de cuidados e otimização de recursos, com potencial para ser replicado em todo o país.
O projeto foi apresentado ao Secretário de Estado da Saúde, que demonstrou uma receção muito positiva. A sua aplicabilidade é facilitada pela integração digital, o que permite que seja potencialmente extensível a outras áreas da saúde. Uma das possibilidades já identificadas é a internalização da espirometria nos cuidados de saúde primários, o que permitiria uma melhor gestão dos casos mais graves e complexos, reservando os recursos hospitalares para situações que realmente necessitem de cuidados especializados de nível secundário ou terciário.
Em conclusão, o projeto “Innobics-SAHS” representa uma solução inovadora, eficiente e efetiva para o diagnóstico e tratamento da Síndrome de Apneia Hipopneia do Sono. Melhora significativamente a articulação entre os cuidados de saúde primários e hospitalares, é sustentável do ponto de vista económico e operacional, e tem um elevado potencial de replicabilidade e transferibilidade, tanto a nível nacional como europeu.
Além disso, o projeto promove uma maior equidade no acesso aos cuidados de saúde. Num contexto em que as desigualdades sociais e económicas muitas vezes se refletem no acesso aos serviços de saúde, o “Innobics-SAHS” oferece uma solução que torna o diagnóstico e tratamento da SAHS mais acessíveis a toda a população, independentemente da sua localização geográfica ou condição socioeconómica.
A implementação deste modelo inovador tem o potencial de transformar radicalmente a abordagem à SAHS em Portugal, melhorando a saúde e a qualidade de vida de milhares de pessoas afetadas por esta condição. Ao mesmo tempo, otimiza os recursos do sistema de saúde, permitindo uma utilização mais eficiente dos meios disponíveis e libertando capacidade hospitalar para outras necessidades.
O sucesso do projeto “Innobics-SAHS” demonstra a importância da inovação e da integração de cuidados no sistema de saúde. Mostra também como a tecnologia, quando bem aplicada, pode ser uma ferramenta poderosa para melhorar a eficiência e a qualidade dos cuidados de saúde. A abordagem centrada no doente, combinada com a utilização inteligente de recursos tecnológicos e humanos, cria um modelo de cuidados de saúde mais ágil, eficaz e centrado nas necessidades reais da população.
À medida que o projeto continua a ser desenvolvido e expandido, é provável que surjam novas oportunidades de melhoria e adaptação. A experiência adquirida com o “Innobics-SAHS” poderá servir de base para o desenvolvimento de abordagens semelhantes noutras áreas da saúde, potencialmente revolucionando a forma como os cuidados de saúde são prestados em Portugal.
O reconhecimento deste projeto na 17ª Edição dos Prémios de Boas Práticas em Saúde, uma iniciativa da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar (APDH), é um testemunho da sua relevância e potencial impacto no sistema de saúde português. Este reconhecimento não só valida o trabalho realizado pela equipa liderada pela Dra. Paula Gonçalves Pinto, mas também serve como um incentivo para que outras instituições e profissionais de saúde explorem abordagens inovadoras para melhorar os cuidados de saúde.
Em última análise, o projeto “Innobics-SAHS” representa um passo significativo na direção de um sistema de saúde mais eficiente, equitativo e centrado no doente. Ao abordar de forma inovadora um problema de saúde específico, o projeto abre caminho para uma transformação mais ampla na prestação de cuidados de saúde em Portugal, prometendo um futuro em que o diagnóstico e tratamento de condições crónicas como a SAHS sejam mais acessíveis, rápidos e eficazes para todos os cidadãos.
HealthNews
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